9 de janeiro de 2009

Carta Postal Para Cês

*detalhe da mesa literária 1 feita por mim
Cês,
(...) voltei agorinha mesmo de Santo Antonio e Sambaqui, lugares que eu mais amo aqui na ilha, lá é diferente, lá a energia parece de outro lugar, lá o mar é manso e musical, lá as ruas são estreitas e sinuosas, lá a gente pensa que a ponte luz se move a si mesma e Aristóteles teria pensado nisso como algo intrigante porque vai mudando de lugar enquanto vamos nós percorrendo a sinuosidade das ruas tão pequeninas & Fichte explicaria com muita facilidade que a Ponte Luz é luminosidade apenas em nossa mente; lá moram os artistas plásticos da ilha, e músicos e talvez escritores; lá tem cores, tem lindo balanço das ondas & isto seria belo nas lembranças de Fernando Pessoa; lá tem cultivo de ostras & Jonh Steinbeck talvez tivesse escrito A Pérola II com outras cantigas; e a gente vê o céu como se só ali ele fosse cristal, cristal porque lá até o céu parece puro de mundo & os Magos & Alquimistas louvam tais energias; Cês, lá tem um portal para outras esferas, dá a sensação de que o universo está nos abraçando e é suave e perfeito; e lá a gente acredita que a vida não é só Terra, lá é um lugar fluido, não é travessia, já é depois de travessia & Guimarães Rosa talvez substituísse o 'nonada' por 'pantravessia.'
um abraço do tipo-sambaqui.
ádria

14 de agosto de 2006

"Pé por pé, pé por si"

"E agora? Como chegar até à estrada? Quem sabe: se eu gritar, talvez alguém me escute, por milagre que seja. Grito. Grito. Nada. Que posso? Nada. E daí? Por mim mesmo, não sou de acertar com o rumo. Tomo fôlego. Rezo. Me enfezo. Lembro-me de "Quem será". E então?:
"para a esquerda fui, contigo.
Coração soube escolher."
Sim. Mas, e as aves, e os grilos? Os pombos de arribada, transpondo regiões estranhas, e os patos-do-mato, de lagoa em lagoa, e os machos e fêmeas de uma porção de amorosos, solitários bichinhos, todos se orientando tão bem, sem mapas ... O instinto. Posso experimentar. Posso. Vou experimentar. Ir. Sem tomar direção, sem saber do caminho. Pé por pé, pé por si. Deixarei que o caminho me escolha. Vamos!"
Guimarães Rosa. Sagarana: São Marcos.
sANdrA & "Pé por pé Pé por si"

16 de abril de 2006

O Olhar Da Face Ao Lado & O Olhar Do Lado à Face

Por que eles ficam tanto tempo sentados no sofá? Por que eles, às vezes, tanto? Por que eles parecem tão felizes? Por que eles não vivem como eu? O que eles tanto escrevem? Parece que vão sair. Para onde será que vão?
Por que a ouvi pronunciar: "a percepção desliza sobre as coisas e não as toca", será assim o modo de ser da Vida para sempre retornar?
Por que o ouvi responder: não tenha tanta certeza, não tenha tanta certeza, Karenina, "é ainda com meus olhos que chego à coisa verdadeira."
Por que sempre há uma pergunta e uma resposta entre eles seguida do olhar do lado à face? Espanto no final? Por que eu gosto de observá-los aqui de minha janela? Do meu ângulo e ponto de vista eu não os compreendo. É o meu olhar da face ao lado.
sANdrA & Os Contínuos Delírios
Entre aspas, frases de Merleau-Ponty_ Adorável.
_ & pensar que isso que amo escrever foi tido como "insignificante" pela Academia. Eu hein?! Como podem definir a Vida Interior de Um Ser Humano Como Coisa Insignificante?

Goethe & Sentimentos

"Enche teu coração tanto quanto puderes, e quando te sentires repleto, dá-lhe o nome melhor, aquele que quiseres, eu não dou nome algum, não encontro nenhum. Assim, o nome é apenas som, esvai-se em seus vapores"

Quem sabe nominar sentimentos não seja o mais importante, já que não mudam os sentimentos em si mesmos. Não posso antecipar coisas pertencentes primeiro ao tempo e só então, depois, a nós, & talvez.

4 de dezembro de 2005

Imaginarium

Pensamento solto 1_ Este texto foi escrito entre o final do ano de 2000 e início de 2001 para um filósofo muito especial_ de coração e pensamentos nobres_ ainda que isso não seja visível. A parte sobre o Tio de Tel foi narrada por Paulo Michelotto via-email, não tenho certeza mas parece que se refere a uma obra editada. Infelizmente não tenho como agradecer ao autor pois não sei se o livro realmente existe. Se alguém ler o texto e houver a possibilidade de repassar a informação eu agradeceria. Todas as frases e idéias pertencentes a filósofos e escritores estão devidamente entre aspas.
Descobri o nome do Autor do Poema do Tio de Tel e da descrição da estória no seminário, o escritor se chama Gerardo Mello Mourão_ para acessar sua obra
http://secrel.com.br/jpoesia/ Buscar o nome do escritor no índice da página inicial pelo prenome Gerardo.
Pensamento solto 2_ Saudações ao Mar & às Estrelas
Coloco o texto Imaginarium aqui no blog como uma saudação de eu pratte in à minha ida para perto do mar, das ondas e da areia. Depois de mais de 4 anos que o escrevi... talvez escreva o II e morando perto das ondas eu prefira falar somente sobre a Terra_ o outro lado das Águas. Eu pratte in ao Velho Platão.
Anna Karenina & Finalmente as Ondas do Mar
Imaginarium

Hesse
1 Belos e Malditos
2 Amor e Metafísica: remédio ou veneno?
3 Divagações Particulares_ o fluir da água que envolve a montanha e a terra seca da montanha que limita a água
4 O encontro com o estranho amigo e os deuses que nunca chegam
5 Phármakons do Imaginário Apaixonado
6 Não estamos a sós em nossas águas – fantasmas, fragmentos e eternos retornos
7 Nunca o vira tão feliz
Citação ‘O homem devia orgulhar-se da dor; toda dor é uma manifestação de nossa elevada estirpe. ‘Magnífico, oitenta anos antes de Nietzsche. Mas não é essa a passagem que eu pensava mostrar-lhe... espere, aqui está. Ouça: ‘a maioria dos homens não quer nadar antes que o possa fazer.’não é engraçado? Naturalmente, não querem nadar. Nasceram para andar na terra e não para a água. E naturalmente, não querem pensar. Isto mesmo. E quem pensa, quem faz do pensamento sua principal atividade, pode chegar muito longe com isso, mas sem dúvida, estará confundindo a terra com a água e um dia morrerá afogado.’ Hermann Hesse. O Lobo da Estepe
Belos e Malditos
Domingo, é outono, estamos na rua da Mansão. Sete horas da manhã, um rapaz alto de cabelos escuros e olhos semicerrados sai pela porta de uma antiga casa conhecida como reduto dos boêmios. Bem ao alto pode-se ler em letras luminosas ‘Belos, Malditos e Andarilhos _sejam bem-vindos’. Nihil veste um jeans já muito desbotado e um blaser preto com um caimento sem simetria, a gola levantada infiltra no seu rosto exausto um cultuar da noite fazendo transparecer a imagem de um homem sedutor, contudo ausente em sua própria sedução_talvez belo, talvez maldito, talvez simples andarilho como todos os que ali vêm. Ele segue pelo jardim, não se sente lúcido e seus pensamentos são como cortes num sonho aprisionado em territórios esquecidos pelo universo, os rumores de vozes e de blues, a insinuar um mundo cult-decadente, permanecem cravados em seu interior, apagando fragmentos de uma madrugada coberta de melancolia e folhas de outono, até então úmidas, no entanto mortas. Nessa hora, ele anda, tenta voltar para casa, seus passos são lentos, todavia tais passos incertos o levam a notar uma mulher, ela está sentada no chão, escorada numa árvore com a cabeça inclinada para cima. Provavelmente atravessara a noite tentando sair de seu deserto particular. Detém-se um pouco, ela pertence ao lugar, com toda certeza_ o corpo frágil, o rosto pálido e distante absorvidos por semelhanças daquela velha fábula da ‘criança proibida e maldita, encerrada em uma barquinha e entregue às ondas que a levam para o outro mundo, mas para esta há, depois, o retorno à verdade’. Formavam, todos eles ali, um outro mundo, ela, quem sabe, além de qualquer um que por ali já estivera. Ainda assim ele nunca conseguira acreditar na hipótese de que algum deles pudesse ser esta criança_ proibida e maldita com a verdade como prêmio por ter sido entregue às águas de um destino preso ao movimento da maré. Ela já aportara? A terra não mais abriga quem muito andou em outras águas? Soterrada em seu próprio pensar, a imagem de uma mulher a se afastar momentaneamente num amanhecer enfeitado por ele através de produtos de sua mente inquieta e resistente às banalidades. Ficção efêmera para uma salvação, quando não se tem o que salvar; romantismo deslocado para um tempo não menos equivocado, quando tudo que povoa nosso olhar é a transparência de uma lucidez para o nada, sua versão que para outros se chamava ceticismo. Percebe a confusão de minutos atrás se dissipar_ de repente estava lúcido e imóvel, não saberia dizer há quantos minutos estivera assim, culpa de hábitos noturnos. O acontecimento mais abominável para ele acontecera, era dia claro, entretanto não havia indícios do nascer do sol e de toda aquela normalidade que o acompanha com sua luz — para Nihil apenas o eco de uma única tentativa, o ressoar de tantos outros para viver e mostrar que estavam vivos, por meio de ruídos, do amassar de folhas há muito enterradas sob os próprios pés, descalços e nem assim observavam o contato com a terra úmida, não, nem ao menos isso. Algumas vozes soam, volta a caminhar imaginando o quanto tudo se torna mesmo diferente para o amanhã. Não suportava o outro dia_ quando ele chegava, sentia-se diante de uma confissão absurda e sobretudo arrancado de seu mundo inexistente. Como isso era estranho: o dia era glorificado pela humanidade enquanto a noite era tida como um espaço fechado onde muitos — ou poucos — vagavam em busca desses mistérios acorrentados e não largados ao mar, por medo ou por tantas coisas nunca ditas. Ciganos sempre errantes. Boêmios sem lar na madrugada. A noite não concede certos direitos e embora fosse um eterno retorno eram todos andarilhos silenciosos a viverem num tempo desprezado_ era tudo que podíamos ser, tudo que desejávamos, talvez. Com estes pensamentos Nihil passava agora ao lado da mulher que os despertara, se fosse dado a ele escolher um nome para esta mulher seria, não um nome, mas uma definição, ‘criança proibida e maldita’ com sua barca ancorada e sem escolha —turbulências de ondas soavam ainda distantes. Quando já estava quase no cordão da calçada ouve uma voz suave e muito, muito atraente, dessas vozes prenunciadoras_ por mais banais que possa ser o que dizem. — ‘Desce a contragosto em sua água aquele que busca o conhecimento’, a procurá-lo através de um olhar sempre pronto a dormir. Virei para trás mas ela dera as costas e se precipitava para dentro da Antiga Casa. Tive vontade de correr até ela, mas não o fiz, contive-me, eu voltaria lá, procuraria por ela, pela ‘criança proibida e maldita’ com voz prenunciadora e ao mesmo tempo deplacée, quem sabe todas sejam?, e que não fora banal.
Uma semana se passara, no Genesis Deus criara o mundo em seis dias e descansara no último. Nihil fechara os olhos e fantasiara outros mundos governados por deuses aprendizes os quais nunca ouviram falar em destinos traçados, ele, no entanto, não descansaria no sétimo, chegara o próximo domingo e ele à Antiga Casa, bela e não menos exótica com seus seres repletos de uma expressão noire. O som do blues soava extremamente alto, entrara procurando vê-la, a música muda de repente, "queria que alguém entrasse em minha vida como um pássaro entra em uma cozinha e começa a quebrar coisas e esbarrar em portas e janelas, deixando caos e destruição. Por isso aceitei seus beijos", a sensação de sempre acaba por voltar, aquele misto de plenitude-dor que só o amor-musicado nos faz sentir, uma inicial e falsa alegria para logo em seguida nos jogar naquela condição de algo perdido que só a nostalgia nos faz sentir. Migala era melancolicamente lindo. Continuo circulando, volta a tocar blues, uma armadilha, um paradoxo prometendo por segundos algo, pseudo-sensações de felicidade, para depois nos dar o que ele tem de melhor e mais denso como a criança que somos e vemos se afastando até sumir em definitivo. Mas ela não era blues, era somente a estranha mulher a trazer lembranças de um outro tempo em minhas sensações. Onde estaria?
— Vê? O destino lhe atira um faca, Nihil. Cabe a você decidir se a pegará pelo cabo e a usará a seu favor ou se a pegará pela lâmina e se cortará. Pensei nesse provérbio chinês durante todas as noites dessa semana e a mania de inverter o que leio me fez trocar a lâmina pela água: o destino lhe mostra o aquário, cabe a você decidir se entrará nele e descerá às suas profundezas ou se irá se afogar estando ainda em sua superfície como alguém que nasceu simplesmente para andar. Ou, ainda, se nunca entrará nele e, nesse caso, o destino lhe mostrará, o cabo da faca, às vezes, pode ser mais cortante do que a lâmina que o acompanha.
Sim. Reconhecera nele o não andar somente sobre a terra, seca ou às vezes umedecida, assim como ela, via o mundo de dentro de suas águas, quase impenetrável, assim como ela ter a água como abrigo é habitar encruzilhadas a mudarem constantemente de rumo com a agitação de suas ondas. Jamais ficariam? Belos e Malditos. Malditos e Belos, desejavam a água de seus próprios aquários, mares, nuvens e pontes, com a cumplicidade da noite a envolvê-los, infinitas vezes, em sensações mágicas e olhares aquosos em direção à umidade — como um convite a insinuar inofensivo a entrada para as águas deste mar e depois conduzir ao fundo do abismo, já não inofensivo, mas tarde demais para voltar
Todas as ‘crianças proibidas e malditas’ amam seus abismos. Elas amam também a noite.

Amor e Metafísica: remédio ou veneno?
Sabemos que entramos em nossos aquários, Nihil, mas não sabemos como viver dentro deles. O sutil impulso em transformar qualquer coisa em ficção faz, muitas vezes, com que a água fique turva: não se sabe mais onde termina a realidade e onde começa a ficção, onde estaria tal área-limítrofe? Talvez o vidro transparente a nos separar do outro mundo — a realidade mesma — acabe surgindo para nos salvar, do contrário, enlouqueceríamos. Brincar sempre, sob o fio da espada, poderia vir a tirar toda a lucidez de nossas águas, ainda quando sombrias, inquietas e em completo desassossego.
Há uma data em seu aquário, mas não se preocupe com ela em demasia. Afogue-se caso seja preciso, sim, se for preciso morra por suas verdades interiores sem trair a si próprio. Beba do cálice de Sócrates, está sempre presente com diversos tipos de líquidos, eis que nele se encontra algo especial: pode ser veneno ou não. O phármakon do qual Derrida tão bem falou: remédio, veneno, droga e filtro. A overdose de remédio é que o transforma em veneno? Renunciá-lo seria render-se ao mundo?
Tudo a nos envolver em nossas águas parece meio paradoxal ou somos nós a sentir tudo assim?
O phármakon bebido por Sócrates, agora o entendo: exatamente o líquido que nos faz viver, que se torna o centro de tudo em nossas vidas é aquele a nos arrastar para uma espécie de substância a destruir nossas ilusões mais sagradas — veneno. Estão ambos lá dentro do aquário e se, por um lado, o remédio nos faz continuar vivendo, uma dose a mais ou a menos e pode se transformar em veneno. Talvez em overdose. Bebo desse cálice em pequenos goles e somente quando muito, muito necessário, não o quero de uma só vez. O fim, depois que estamos completamente viciados, será sempre o mesmo: viciar-se em seu próprio pensamento leva para caminhos sem permissão de retorno e isto é a única coisa a não envolver paradoxos. Queremos o princípio de tudo que aí está, mas o que aí está, em certa altura, não mais nos interessa, a realidade mesma diante do que somos obrigados a viver passa a necessitar de uma outra espécie de droga, um outro algo alquímico, pois o phármakon-remédio-alimento já não funciona mais, viciou e ao viciar não mais funciona nos empurrando para fora da realidade ou para os abismos do aquário — não se tem para onde ir.
Talvez ambos só sirvam para a metafísica e então desejamos uma alquimia, ainda inexistente dentro do que somos, para ajudar a suportar a realidade que nos embala. Com muita sorte voltarmos a ver fascínio diante do universo. Talvez uma regressão infinita de medicinas mágicas tão insistentemente procuradas. Nós dois, porém, nunca encontrávamos alguma que pudesse se manter além de uma madrugada. Nós dois éramos mutantes e seduzidos pela filosofia como se ela fosse a quintessência de onde todos os outros remédios-venenos surgiriam. Nós estávamos loucos e nada notáramos um no outro, nós queríamos expandir essa loucura desafiando a pedra filosofal, sobre a qual o universo fora construído, porque queríamos salvar nosso amor de cair no abismo no qual entráramos. Mas exístiamos, eu e você, Nihil, antes de nossa paixão e continuávamos muito ocupados em saber, por exemplo, qual a razão de nossa essência ser uma metáfora para alguns e para outros uma verdade eterna, em saber em qual ponto Aristóteles resolvera trair seu mestre Platão com toda aquela discussão sobre o Terceiro Homem, em saber quando um brilhante filósofo como Nietzsche realmente perdera a lucidez ou como Hegel chegara a tanto conformismo sem deixar de ser poético; na razão em por que há mais de 25 séculos falam e escrevem sobre as mesmas questões sem encontrarem respostas absolutas, por que a terra gira em torno do sol e o sol se move em espiral e para onde vai. E nosso amor se diluía em conversas ora encantadoras, ora áridas e sem sentido.
Por que ficávamos noites e noites falando sobre isso? Nós dois éramos céticos — como o amor seria sentido de outra forma?

Você: sou vampiro de vozes e pensamentos, salvo o meu espírito através de palavras. Então alguns se viram para mim e dizem: não te acrescentou nada ver ou ouvir ‘isso’. Eu respondo: acrescentou sim, é preciso transcender os rostos que passam diante do nosso olhar para podermos tirar o pensamento daqui, transportá-lo para outro lugar, é simples, Karenina.
Uma sensação me mortifica: que outro lugar? Não acreditavámos mais no transcendente, pelo menos não mais do que sendo outra ficção espalhada pelo mundo. Nihil falava como se frequentássemos um lar noturno com rotinas que necessitassem ser quebradas — de minuto a minuto — para combater desânimos provenientes de uma ambição existencial a qual estava além de nossa condição humana. Que outro lugar, Nihil? Ciganos não possuem nenhum a não ser em si próprios, em suas águas. Seguiu dizendo que caía sempre em pensamentos fragmentados, esta era sua única força, talvez intuitiva. Transcendendo o agora que via, não como sendo a metafísica ou pelo menos tentando que não fosse como ela, poderia recordar algo do passado com uma certa fidelidade em seus manuscritos imaginários. Para ter um passado de ilusória estabilidade e responder as mesmas perguntas sem entrar em contradição consigo mesmo, pois, segundo o que dizia, sua mania de pensar tornava cenas de suas lembranças instáveis devido ao fato de recordá-las conforme seu estado emocional de vontade. E, além disso, dissera: como tenho esse estranho hábito, Karenina, já não sei mais nada sobre a minha realidade sentida e aí o pensado também corre o risco de se perder, de sentir nessa rua, que fica para trás, a síndrome de eternidade, nosso passado, diluido, sabe-se lá para onde e porquê. Muitas cenas construídas a partir de uma só, apenas isso, Karenina. Fragmentos me salvam dessas cenas do imaginário e me devolvem apenas a uma delas. É coisa de andarilho, rien de plus.
Agora um pensamento me mortifica: sou como você, Nihil, sou andarilha, sou noturna, ‘eu caminho entre homens como entre fragmentos’, porém começava a pensar na triste possibilidade de minha felicidade estar em um homem que nunca entrou em águas de qualquer mar, só conhecendo a terra seca, sempre terra. Mas eu queria você, queria seu rosto e suas palavras.
Chove no gramado da Antiga Casa — você está com jeito de quem sabe sugar as coisas nobres do mundo, isto o torna vivo e morto a um só tempo. Eu amo você, isso pouco importa entre nós. Precipitadas chuvas vêm e vão e entre as ruas ouve-se algo deslizar torrencialmente como se o aquário de deus tivesse se partido e espalhado seu líquido por sobre nós. Quem pisará ainda aqui? Vou sair para fora, o aquário divino foi quebrado, quero a roupa preta grudada em meu corpo e meus pés descalços e molhados e esquecendo sob eles o vacilar demasiado de meu desejo. Passará por aqui, Nihil, com os pés úmidos também? Piso nas águas dessa chuva, não é hóspede, não pode ser, eu sou. Vou com passos lentos, tudo isso me incomoda pois não conheço meu destino, sei, devemos amá-lo, nossa fatalidade é não saber onde ele está. Como ser profundo, descer às profundezas de grandes águas, sem antes ter estado em sua superfície? Será preciso ainda manter os pés na chuva? Ela vem do alto, mas eu estou aqui, ela cai, mas eu ando por sobre ela, mesmo sem saber para qual rio correrá, sinto escorrendo em minha pele. Ouço você gritar, vamos, Karenina, você já está toda molhada, por que passos tão vagarosos? Respondo rindo muito alto, meio embriagada, não sei quando deus quebrará outro aquário, se quebrará, não sei quando ele entrará de novo em suas águas, ah, Nihil, precisamos parar de imitá-lo. Em resposta você me pegou no colo e saiu correndo em direção a sua casa enquanto dizia, deus provavelmente preferiria uma metáfora melhor para movimentar sua rotina divina, a metáfora água é somente nossa e de Heráclito; deus, é claro, queria um outro tipo de prisão. ‘Shelley sentenciou, todos os poemas do passado, do presente e do porvir são episódios ou fragmentos de um único poema infinito construído por todos os poetas.’ Deus talvez fosse simplesmente um poeta que vira nos gregos o phármakon para sua divindade monótona, para ‘o poeta o real se torna insuportável’, anseia-se pela ficção e pelas loucuras do imaginário. Deus, se existe, é poeta com certeza. Mas o que ele estava dizendo? Ora, ele era cético e estava falando em um Deus-Poeta entediado com a sua realidade. Bebera demais nesta madrugada, correra com Karenina entre seus braços, sentindo seu corpo gelado e úmido contra o seu, onde em toda aquela chuva a amara mais do que qualquer coisa que já tivesse sentido ou pensado — naquele momento a amara mais do que a si próprio e, no entanto, a filosofia logo retornaria para canalizar nosso fluir a um vampirismo sempre pronto a atacar idéias e mais idéias – com muito pouco a sentir.
Se não fosse o mundo que nos cerca estar com você, Nihil, me bastaria por completo. Isso é loucura? Um primeiro gole da metafísica e não há mais volta? Você me ofereceu o líquido de seu próprio cálice como se me estendesse o Santo Graal, desculpe, mas não posso aceitá-lo. Não agora, agora não. Ainda não aprendi a me viciar em meu sentir. Às vezes me pergunto quando morreremos afogados em nossas próprias prisões. Você passou a confundir-se com a metafísica, dizendo ser o princípio e o fim. Todos somos, o princípio e o fim de nós mesmos e onde desejamos algo mais do que qualquer outra coisa: a não-vulnerabilidade ao tempo.
Quis levar-me junto? Estendeu-me o copo com água, o primeiro gole desta taça soa muito perigoso. Tenho medo de misturar nossos cálices. Há prisões distintas num mesmo tempo, líquidos iguais em aquários diversos, quartos diferentes. Eu soube sentir a paixão pelo seu pensamento e ar displicente e sedutor; as palavras movidas pela emoção, tão somente pela emoção — no movimento dos seus olhos úmidos também. Estava sempre vendo aquilo que se sobrelevava fortemente em cada parte sua que eu poderia conhecer. Acabei por pensar na possibilidade de você ser suave, poético, sensível sem que isso soasse ridículo. Quem sabe eu me apaixonara por entrelinhas a serem mostradas somente pelo meu olhar sobre seu corpo, sua imagem para mim: a de que possuía seu calor sem se deixar absorver por completo.
Há mais sedução num olhar perdido do que no anseio de liberar instintos que se tenta sublimar? Conversamos por muitas horas e por toda aquela primeira madrugada vi você tentar parecer tranquilo enquanto se irritava por estar sentindo algo não previsto. Você viu meus lábios tremerem e o ríctus da minha boca, levemente curvado para baixo e que davam ao meu rosto uma expressão de tristeza, foi olhado por você como se meus lábios tivessem sempre pertencido ao seu toque. Eu escravizaria minha boca na sua se eu soubesse que seu sangue lateja de desejo pela minha pele como em relação à metafísica – que tanto anseia e tanto nega, mas sei que amaria poder acreditar sem dor.
Imagens fortes. Lembro daquele dia chuvoso e frio e onde o vento agitava meus cabelos nos olhos e me impedia de vê-lo com maior clareza. Eu estava parada com um livro nas mãos e ao meu lado você parecia estar somente para que eu pudesse falar em voz alta. Alguns metros à nossa frente, sob uma tenda azul, algo meio cigano eu via um menino pisar na areia branca e molhada com os pés descalços. Imóvel, você também observava a cena sem mover nada em sua expressão, seu cabelo era o único a se agitar em ondas pelo forte vento de inverno. Passei o livro para suas mãos, você continuou inexpressivo, porém enquanto o pegava e o abria percebi que saíra do estado estóico da indiferença, provocado pelo excesso de autocontrole, e o vira pensar profundamente em algo, um algo a ocupá-lo por inteiro. Estava mais silencioso do que o seu normal. Depois baixou a cabeça e enquanto o menino ficava com os pés cada vez mais enterrados na areia e concentrado em seu próprio aquário, ainda tão aliviado de sensações incompreensíveis, então você leu: ‘para você que não conheceu as melhores performances, não ouviu a pura verdade, que viveu às margens dos que lhe amaram. Essa lua também é sua, embora Deus não queira. Esse mar de águas claras e salgadas é o que tempera seus pecados (...)’ Nos afastamos do menino e de sua brincadeira infantil e fomos cada um de volta para nossas águas salgadas e já não tão claras. Eu iria continuar bebendo da taça de Baudelaire e em outras mais, provavelmente no cálice de Rimbaud e Cioran. Estava preparada para pingar algumas gostas, de qualquer phármakon que encontrasse, nesse cálice vazio — e tudo porque eu lutava para ver você acreditar, eu seria capaz de amá-lo mesmo em minha prisão e enterrada em minha filosofia. Prisioneira do convite inofensivo de minhas águas, as quais pertencem ao balanço falsamente calmo de estranhas coisas em sua superfície — demorando para nos mostrar o que há lá no fundo.
Divagações particulares — O fluir da água que envolve a montanha e a terra seca da montanha que limita a água
Eu não sei quando dei o meu primeiro gole e se prefiro um ou outro: remédio-veneno. E entre momentos de euforia e de em um nada crer vou bebendo da mesma taça do nosso caro Platão-Sócrates. Recusei sua taça, elevar o que sinto por você faria com que eu me rendesse a mim mesma numa espécie de phármakon da sedução e quando o declínio viesse junto com a degradação do nosso desejo eu não poderia continuar a habitar minhas águas, pois o declínio teria a dimensão e o calor do seu toque – suas mãos deslizando sobre minha pele, minha pele a escorrer de suor em seus dedos.

Talvez os sistemas filosóficos sejam mais fáceis de serem compreendidos do que divagações particulares e, por isso, acabamos por nos render a eles, já estão prontos. Não falam de um tipo de sentir sobre o qual gostaríamos de ouvir ou viver, sentir soa antigo e equivocado para os sistemas. E, no entanto, é reconfortante saber sobre sua existência para quando eu estou cansada, tão cansada que Hegel me parece o maior poeta já existente, não importando se sua teoria filosófica é plausível ou não... eu o transformo em poeta, em louco, em uma divagação particular sem que seja minha. Tomo para meus pensamentos suas palavras refinadas e seu determinismo consola o meu cansaço. Eu vou junto com a história da humanidade, sem querer eu vou sendo arrastada e, então, continuo a sentir, afinal, o ‘mundo é um mar em que as ondas se agitam num devir incontido’. Eu não sou devir, mas sou incontida. Nem mar, nem ondas, apenas um líquido — às vezes teima em transbordar do aquário.
O que a mania tem a ver com tudo isso? ‘mania’ de buscar o que não vamos encontrar? a essência da filosofia como algo inacessível? pois do contrário, filosofaríamos ainda? Não importa, eu quero descer às profundezas do meu aquário leve-me ele à loucura ou à irracionalidade total, enfim, tudo igual. Poderia me levar até onde seus olhos estão nesse momento? Tenho a mania de querer olhar meu mundo com os seus olhos, mas não os vejo.
O amor para Platão é acima de tudo falta, de possuir aquilo que não temos em nosso próprio ser. Relembre o discurso sobre o amor da estranha mulher de Mantinéia, no Banquete. Quando alguém nos preenche já nos ensinou a suprir alguma falta então descobrimos algum atalho e partimos em busca de outros mais; buscar incessantemente, é somente isso o existir, nadando de um lado para o outro. O amor é bastante contraditório, não? Buscar, encontrar, sonhar e sobretudo elevar-se a ver cada vez mais alto — sentir cada vez menos.
Lembra do sonho de Sócrates escrito no ‘De Anima’ de Platão? Sócrates sonhara com um belo cisne e seu canto mais sublime, quando amanheceu Platão bateu à porta de Sócrates e este disse: ‘eis meu cisne’. Por muito tempo foi assim que você me chamou: cisne, com o canto mais belo que podia existir. ‘Quando eles sentem aproximar-se a hora da morte, o canto que antes cantavam se torna mais frequente e mais belo do que nunca, pela alegria que sentem ao ver aproximar-se o momento em que irão para junto do deus a que servem, é a dor que lhes inspira aquele canto supremo. Para mim, diz Sócrates a Símias, não é a dor que faz com que eles cantem, como não é ela que faz cantar os cisnes, eles são as aves de Apolo, possuem um dom divinatório e é a presciência dos bens existentes no Hades que os faz, no dia de sua morte, cantar de modo tão sublime.’ Eu não sabia que os cisnes cantavam, não sei a razão, mas sempre me pareceu que eles fossem silenciosos. E se assim for estive rondando suas águas com o silêncio que eu pensara existir no canto dos cisnes e, por isso, um não ressoar de despedida. Cantos sublimes tentam nos salvar de sons que vagam por vales e montanhas, criados em momentos de desespero e solidão, simulacros de despedidas em lendas antigas, a bater à nossa porta para trazer palavras perdidas em sonhos. Levemente mais silenciosa sinto, meu canto é apenas um som imaginário a me conduzir por entre um movimento de águas e uma mobilidade de sensações impulsionadas por seduções imaginárias. Quero, assim, um canto sublime, porém silencioso, um canto só meu.
Ora, como dar prioridade para a emoção e não para a razão? Como saber onde começa uma e termina a outra? Colocar a razão acima da emoção ou vice-versa, sem termos certeza onde está tal área-limítrofe parece um absurdo. A área-limitrofe seria como um fio condutor? Um simples fio, quase invisível, que ora nos conduz para a razão e ora para a des-razão?
Há um não-ser em cada louco que habita sua própria loucura?
Estávamos ficando cada vez mais céticos, naquele eterno retorno de uma nova noite, caminhávamos até a Antiga Casa envoltos por um frio intenso e gélida umidade, no céu nenhuma estrela, também nenhum vento soprava, apenas muito frio. Nihil passara gel nos cabelos e dava a impressão de estarem molhados por toda aquela umidade do tempo, estava, além disso, com olheiras profundas, dormira pouco e somente na parte da manhã. Ainda assim, atraente, as olheiras combinavam com seu olhar escuro e seu tom de pele. Uma voz alta com pronúncias aos tropeços me tiraram desses pensamentos sobre sua imagem. Virei para o lado e vi um homem, já velho, com um sobretudo esfarrapado e o cabelo comprido, com a barba por fazer e os pés descalços. Nihil percebeu meu interesse e disse: — Melhor não olhar muito para ele, Karenina, está sempre rondando por aqui, nunca o viu? Não, nunca o tinha visto. Nihil conta, não sabe quem foi, um dos boêmios da Antiga Casa dera um exemplar de Assim Falou Zaratustra para o mendigo e desde então andava por ali, com frases de Zara soltas ao vento e, por isso, o chamavam de O Louco. Às vezes o pessoal vinha até a frente e se divertia com ele, era cruel isso. Paramos em frente à entrada do jardim e eu pergunto qual parte de Zara ele estaria gritando naquele momento. Não sei, responde, Nihil, acho que o Viandante, porém as fases parecem sem conexão. Ele concorda em ficarmos ali no jardim, próximos à rua, observando, era uma cena de profunda tristeza para mim porque era o espírito de um homem, que poderia ter sido um espírito nobre e que se deixara seduzir tardiamente por Nietzsche, perdido e embriagado em meio a gritos que professava enquanto mantinha o livro em sua mão esquerda com o braço estendido para o alto, como se carregasse uma bandeira. Alguns carros passavam e se tornava necessário desviar dele por estar bem no meio da rua, um rapaz passou e com a cabeça para fora mandou que ele saísse dali e calasse a boca, mas ele não deu a mínima importância. Como é triste amar algo sem lucidez. Acho que era assim que o Louco estava a amar as palavras de Zaratustra, deve ter se apegado à obra, pois mesmo em meio a sua loucura intuíra que todos procuravam a Montanha de onde Zara viera, intuíra, essa montanha deveria estar dentro de cada um, rodeada por águas de um mar que ora enxergamos como pura água e ora como uma planície onde não há mais verde, só a terra seca. Depois ele abrira o livro e começara a ler, ainda aos tropeços, ‘eu sou um viandante, seja qual for o meu destino será sempre de um viandante, tempo, acasos, sorte, terras estranhas, minha solitária peregrinação, derradeiro refúgio, derradeiro perigo, que seja minha melhor coragem não ter nenhum caminho atrás de mim, deste portal chamado momento, uma longa, eterna rua leva para trás: às nossas costas há uma eternidade. Tudo que pode caminhar não deve já uma vez ter percorrido esta rua? E se tudo já existiu que achas desse momento? Também esta Antiga Casa não deve já ter existido? Também esta longa rua que leva para frente, eu sou um viandante’. Ele estava a misturar partes diferentes do livro, é provável que tivesse desmontado de tanto manuseá-lo e ele acabara reunindo novamente as páginas sem prestar atenção a sua seqüência correta. Comecei a chorar, era impossível para quem conhecesse Zaratustra não chorar ao ver a cena do Louco, ali, no meio de uma rua semi-escura, descalço naquele frio intenso numa noite sem estrelas.
— Não fique assim, minha Karenina, você não tem como saber se o que ele está sentindo corresponde a terrível imagem que estamos vendo, sentindo do nosso jeito, não tem como saber. Vem, vamos entrar, ele vai ficar aí por horas ainda e não quero nem que você congele nem que acabe indo até lá perguntar o que ele mais ama em Zara. Nihil me puxou pelos ombros para entrarmos, mas antes de me virar completamente vi que o Louco guardara o livro no bolso do sobretudo esfarrapado e se pusera a dançar de forma agitada, ele já se encontrava na calçada do outro lado — O Louco dançava como um feiticeiro. Então eu murmurei para Nihil, eu também, Nihil, eu também, só acreditaria num deus que soubesse dançar.
— Além de ser poeta, não é mesmo? Ou já esqueceu disso? Ora, Karenina, não fique tão triste por ele, ouça, quando os deuses morrem dentro de nós morrem sempre de tipos diferentes de mortes, somos nós que os deixamos morrer por nos sentirmos traídos por eles, que nunca chegam, um dia você vai ouvir a história de Tel sobre seu tio Gerard. Talvez o Louco tenha encontrado em Zara um novo deus para si próprio, quem sabe em vez de permitir que morresse tenha permitido nascer algo novo dentro de si? Talvez nunca, até então, tivesse carregado algo precioso dentro de suas andanças. Como vamos saber? Ele não vai responder com lógica nada que perguntarmos. E depois há um bom porto para cada território que seres noturnos como nós percorrem. Sempre há. Nós não temos o nosso?
Sim, Nihil, eu e você e nossas madrugadas — o amor um pelo outro. Talvez. Eu chorara, mas o olhar de Nihil também se modificara, estava com uma sensibilidade terna, um brilho que nunca havia percebido antes, uma ternura plena. Talvez de compreensão. Fiquei na ponta dos pés e o abracei e beijei. Nessa noite não bebemos nem conversamos, apenas dançáramos como há muito não fazíamos. Dançamos no terraço da Antiga Casa, com as estrelas, que não estávamos vendo, sobre nós, e, lá embaixo, o Louco, que agora dormia com o rosto atirado na calçada, sonhando com seu Zaratustra particular, talvez salvando seu próprio deus, enquanto sua face deitada naquelas lajes frias me fizeram recordar que ‘as almas da meia-noite, são mais claras e profundas do que qualquer dia’.
Esquecer impede que a tristeza conceda a uma pessoa triste somente os traços da mãe de Eros - para impedir que fique a mendigar as sobras de festas, impedir que se sente à porta, descalça, ‘sem lar, a dormir no chão duro, junto aos umbrais das portas, ou nas ruas, sem leito nem conforto.’ Por muito tempo, depois da cena do Louco, andei descalça em meus abismos, tentando voltar para lugar nenhum.
Utopia, significado para lugar nenhum e enquanto você proclamava ‘conhece-te a ti mesmo’, sempre repetindo o oráculo de Delphos, eu dizia: antes é ‘preciso confessar, todos tememos a verdade’ do ‘abismo ainda não trilhado’ pelas nossas emoções, pensamentos, sobretudo os sonhos e o imaginário que habitam em nós sem que os percebamos. A confissão é necessária antes da travessia, mesmo para andarilhos.
Sem jogos de linguagem — talvez em sua superfície algum persista. Nessa nova madrugada o que ronda suas águas? Em outras circunstâncias eu não jogaria os dados sobre a mesa e me conformaria com a possibilidade de destino. Não devemos duvidar de coisa alguma, por outro lado, o surpreender-se, o admirar-se, o tháumas do qual Platão fala e, depois, Aristóteles em sua Metafísica, faz com que continuemos sendo quem somos sem abandonar labirintos invisíveis, sem perder o encanto pela possibilidade de caminhos ainda desconhecidos. O aquário de Platão era úmido, muito úmido, mas o de Heráclito superou toda a força que pode haver na falta de algum movimento. Qual deles habita sua superfície?
Talvez recomece de outra forma, estou cansando de Werther’s. Existiu um tempo onde havia distância entre nós e nele você me seduzia através das palavras e da linguagem e então nos aproximávamos. Mas a proximidade ameaça o encanto do amor, banaliza porque nos força a perder tempo com coisas que não mais nos comovem. À medida que a distância foi diminuindo o encantamento esteve quase a se perder. Dizem que águas de diferentes aquários não podem se misturar jamais; um grande amor, sem nenhuma certeza se será grande ou se será, ao menos, amor, passageiro, transitório, cansativo. Abro novamente as páginas de Werther e me pergunto se Charlotte não funciona para ele apenas como um apelo universal, apenas para explodir seu próprio sentir. Acima dela talvez houvesse a possibilidade dura da realidade escrita por sobre outros nomes, nada além de nomes. Eu não quero acreditar que tanto faz amarmos essa ou aquela pessoa porque se está ocupado demais com abstrações insolúveis, não quero crer que fazer da filosofia sua droga personalizada tire esse espaço que o destino nos mostrava a todo instante — com o qual você se assustava e eu também.
Algo passara a se esgotar em mim, não sentia mais a densidade da água, algo se esgotava em mim e eu não sabia se se isso era bom ou ruim. O amor virara ceticismo de amor romântico. Eu, apenas, cética. Algo há que produz o fogo e suas cinzas. Pisei hoje por sobre elas, geladas. Restos substituídos. Senti um abandono como naqueles dias em que o vento parece cobrir o mundo de tristezas e raspa a nossa pele para lembrar que a tristeza não é um privilégio só nosso. Culpa do vento onde o destino se alegra com as próprias cinzas imaginárias, produzidas por ele mesmo, a rondar uma liberdade que poderia ter existido no passado.
Ainda quero ver esse mundo transformado em ficção, porque a realidade se nega ao balanço das ondas – porque a realidade se nega ao mar. A montanha ainda está longe. Minha pele fria. Há algo de suave ainda no que sou. Subo à montanha. Encontro você lá, Nihil, de onde poderemos ver os grandes rios e abismos que desviamos por falta de coragem. De onde poderemos ver o fluir da água que envolve a montanha e a terra seca da montanha que limita a água.
O encontro com o estranho amigo e os deuses que nunca chegam
À Gerardo Mello Mourão, pois aqui está boa parte de sua literatura maravilhosa.

Belos e Malditos — mais um inverno iniciava e nós seguíamos pela noite, ora barulhentos, ora silenciosos, mas dessa vez você, Nihil, chamou o Tel para sentar e beber com a gente. Seu estranho amigo chegou, sentou-se ali mesmo na grama úmida de sereno, pois estávamos no jardim da Antiga Casa, e começou a falar sobre seu tio Gerard, o Mourão. Eu fiquei encantada com ele, claro que fiquei, era o mais subversivo que você me apresentara, percebia-se em Tel um phármakon extravasado como se fosse um fio de ligação entre a sua mania de metafísica e seu ceticismo refinado e brincalhão. Contou que seu tio Gerard fora seminarista, assim ele começou a falar, e depois,
"meu tio Gerard foi um exemplo desse tipo de início de vida, tinha os olhos achados e perdidos como todo aquele que se propõe a ver os olhos de um deus. Apenas ele se detera mais numa coisa, ele era mais místico, todos procuram desesperadamente a face daquele que nos prometeram e no lugar dela era sempre vazio. Nada. Nenhum deus. Nada. Nunca nada. Seqüência de nomes, todos reais procurando em vão a mesma coisa sob a capa de estudos, línguas e outros afazeres: a face de deus. Eu digo a mesma coisa que meu tio: não achamos. E é isso que nos remete lá para dentro e não nos deixa sair: não conseguimos ver nada. E dissemos: lá não há nada. E o medo que temos é de que estejamos certos, de que certos pensamos estar. Meu tio era considerado santo e isso queria dizer que ele voava por sobre os problemas do mundo dos meninos, do jeito que eu, Tel, pairo por sobre deus sabe o quê e as pessoas acham que não podem me sentir ou tocar. Ele morava num lugar terrivelmente lúgubre, praticamente ao redor do cemitério dos padres redentoristas. Tudo respirava morte. Visitei o antigo noviciado e quase vomitei, não agüentei ficar no pátio-cemitério. Fedia a flores de defunto e lá havia um padre inteirinho que se recusava a se dissolver, ano após ano abriam para retirar os ossos e lá estava ele inteirinho. O milagre para mim era o mais puro terror." Gerard contava também sobre um padre que pedia a deus para morrer depressa. É a alusão a esse que não morria nunca. Um exercício de guerra onde se ficava a maior parte do tempo tentando se comunicar com um deus. Imagine, Karenina, como foi isso para eles que nunca acharam Nada. Lembro quando ele estava quase morrendo e antes de dormir entoava um canto particular, cheio de metáforas, eu dormia pensando no quanto tudo aquilo murmurado por ele, todas as noites e durante meses, poderia fazê-lo sonhar com a face de um deus nunca encontrado. Às vezes eu chorava baixinho porque sentia uma apropriação do seu sangue, de sua frustração, no meu próprio sangue. Um vampirismo confesso de algo profundo que nos toca e nos desencanta. Eu me desencantara cedo demais com o metafísico, pois tivera um tio com olhos achados e perdidos. O hino noturno dele? Era breve, muito breve, falava no "caminho da águia no ar, o caminho da serpente sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar e da espada pendurada sobre os oceanos, temperando o caminho do bravo onde os demônios passeavam entre clérigos operosos e anjos indolentes: do outro lado do mundo, entre charutos fumegantes e copos de cerveja holandesa, entre silêncios e algazarras, a palavra e a sombra de Platão transitavam pela sala com voz sonora: o tempo de loucura é que abate à porta do banheiro o guerreiro que só tem medo de si mesmo."1
Quando Tel terminou a história, virou-se para mim e perguntou: o que você busca no fundo do seu aquário, Karenina? Em suas águas? O que espera encontrar? Voltei meus olhos para ele sentindo minhas têmporas pesadas, como se visse ali mesmo o grande Nada do seu tio Gerard, como se ele estivesse também sentado ali e esperasse uma resposta minha, respondi simplesmente: Nihil.
Parti com os pés secos e lentos em direção ao meu porto seguro e eu sabia, lobos da estepe têm total razão, não nascemos, é claro, para o aquário, é tarde, já o enchemos de água e nos seduzimos com o que encontramos, mas por momentos queremos abandoná-lo, sabemos, não é o nosso lugar, nascemos para andar na terra, recusamos, porém, tal destino ou natureza e permanecemos nele, nadando de um lado para outro, em círculos, afogados em solidão, em uma consciência de finitude ilusoriamente transformada, por alguns instantes, na síndrome de deus. A existência torna-se, então, paradoxal, queremos um lugar que somente nos reconhece como intrusos e o verdadeiro mundo, a realidade mesma, é desprezada, pois eis que já olhamos através do vidro do aquário e o que vemos já não nos é tão atraente. Entre um mundo ideal ou imaginário_ o próprio aquário_ e o mundo lá fora, preferimos o primeiro e assim, podemos morrer afogados, inventando hinos breves para recitá-los na madrugada.
Senti hoje as gotas do rio de Heráclito grudadas na minha pele, sempre que essa sensação me invade meu pensamento se torna invertido. Há algo além dessa existência empírica? Precisávamos acreditar no transcendente, mas caíamos sempre no ceticismo. Loucura? Tentarmos dividir isto é que se transformou em loucura. É preciso estar preparado para habitar a própria prisão metafísica. Talvez o ceticismo acabe por nos conduzir a uma síndrome de deus invertida ou a uma proximidade de suas sensações. Terá ele perguntas a roubarem seus pensamentos? Uma espécie de metafísica de deus? Questões a tirarem seu sono ou a deixá-lo deprimido? E ao olhar para nós, talvez pense: tudo o que estão fazendo é a mesma coisa que nós, os deuses, também fazemos há um longo tempo. O universo é uma regressão ao infinito de todas as idéias inexplicáveis, não as dei porque nem mesmo eu as possuo, eu também sou um Sócrates, um Platão e um Nietzsche, mas não sou a metafísica, apenas durmo em outras águas. Dessa forma, começara a amar os céticos porque nada esperando possuem mais coragem e podem, assim, movimentar mais peças em suas águas, estejam elas onde estiverem.
Phármakons do Imaginário Apaixonado
Os dias que passávamos juntos eram raros. O amanhecer também, mas nesses havia a sensação de despedida e eu não sentia falta deles. Você acordou certa manhã com uma estranha frase, ‘a morte não é um acontecimento da vida, não se vive a morte.’ A metafísica também não é um acontecimento da vida, não se vive a metafísica, a não ser que esteja preparado para se afogar. Simples exigência profunda de sono, mas um sono que é de cada um que a sonha, nada mais. Eu acordara com o sono e o sonho latejando no meu sangue e nos culpamos por despedidas circulares, mas como tentar infiltrá-las na normalidade? Amar era complicado, em qualquer lugar e poemas lidos no original. Meus pensamentos sempre difusos pela manhã não ajudavam em nada, os absurdos da noite, por não estarmos de guarda contra nós mesmos, pareciam não nos pertencer. Persuadir-me de que dormir me levará para dentro ou para fora do aquário? Você continua dormindo?
Estava sonhando?

Você também tinha seu hino preferido, dizia, com um sorriso maroto no canto da boca, o Canto Noturno havia sido escrito para boêmios e céticos-suaves como nós dois, e frequentemente enquanto passava um café preto e eu preparava o chantily, ficava cantarolando baixinho, nesses momentos eu via você muito, muito feliz. O Canto era realmente de uma beleza enorme, musicado, apenas ali, entre as paredes de uma antiga cozinha de madeira e o murmurar rouco de sua voz: ‘é noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes — e também a minha alma é uma fonte borbulhante. É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam. E também a minha alma é o canto de alguém que ama. Há qualquer coisa insaciada, insaciável, em mim; e quer erguer a voz. Um anseio de amor, há em mim, que fala a própria linguagem do amor. Eu sou luz; ah, fosse eu noite! Mas esta é minha solidão: que estou circundado de luz. Ah, fosse eu escuro e noturno! Vejo olhos à espera e as noites iluminadas do anseio. O desejo de desejar, tocarei ainda a sua alma? Para onde foram as lágrimas dos meus olhos? Seres escuros, noturnos, somente vós, somente vós! Ah, há gelo em volta de mim; queima-se minha mão tocando em gelo! Ah, há uma sede, em mim, que almeja pela vossa sede! É noite, ai de mim, que tenho de ser luz! E sede do que é noturno. E solidão.É noite: como uma nascente, rompe em mim, agora, o meu desejo – e pede-me que fale (...)’ Depois você me pegava pela cintura e rodopiava ao redor da mesa olhando para minha boca, de repente parava, colocava meu rosto por entre suas mãos e me beijava como se fosse sempre a última vez, um beijo que vinha junto com sua respiração como um toque em meu pescoço de sensação-de-partida, desespero-velado — como se disséssemos ‘adeus’ antes de dizer ‘como você está nesta noite?’ Bem, estamos bem, não é mesmo? E não quero dizer adeus. Por que diria adeus para você, Nihil? Se pensar na umidade noturna, no canto noturno de um tempo a ser descoberto, olhe para mim ou murmure simplesmente:
‘eu era justo como uma criança, então agora sou somente um homem.’
A metafísica que nos unia, puramente entrelinhas a circundarem nossa existência. Uma espécie de além-do-empírico nos aguardava a cada movimento de um jogo de dados com possibilidades finitas, mas secretas. Gostaria que tivesse olhado através da transparência os vários aquários que construí e embora nenhum sirva para viver a realidade foi o que o seduziu, não, Nihil? Também o que nos distanciou através da proximidade. Aqui o phármakon foi veneno. E quando uma tremenda intransigência com a realidade se manifestava nos meus pensamentos e logo após nas minhas atitudes, percebia o quanto simulava gostar da luz do dia. Como você, Nihil, odeio a normalidade, odeio esse ir e vir sem sentido que todos damos as nossas vidas. Existir então é isso? chinelos de lãs e jornais? Abominávamos tal coisa e as pessoas, que nem sequer eram capazes de olhar para o quarto onde o seu aquário estava, nos cansavam profundamente.
Como alguém pode morrer sem nada ter visto de si próprio?
O que nos uniu foram nossos pensamentos, você dizia que eu poderia construir o que quisesse, ir para todos os lugares ou nenhum, falar ou silenciar, amar ou odiar. E dividir nossas águas. A noite de insônia me recordou noites melhores de boas madrugadas e a ilusão de possuir um tempo infinito soou e foi quebrada pelo retorno do meu olhar sobre fotos, bilhetes e músicas antigas. Do contrário, reviraríamos baús velhos colocando em risco nossas ilusões? Sempre alguém é que coloca o outro numa condição de Werther. Suposta realidade jogada por sobre pedestais, os quais funcionam melhor para aqueles que não possuem coragem; Werther para ser lido por aqueles que precisam de consolo. Bilhetes antigos funcionam melhor em dias de chuva e silêncio. E eu funciono melhor na metafísica de minhas águas. Estive equivocada com o seu durante tanto tempo. Mas eis que sinto sua falta, Nihil, como jamais você irá perceber que senti.
Noite de intensa chuva — Eu não sei como eu sou, talvez o espelho saiba mas ele sempre me engana e nunca me mostra quem eu realmente sou, nosso nome é espelho porque somos muitos a expressar tudo que sentimos e pensamos, a expressar tanta mobilidade de nossas águas em nossos abismos que mudam com o clarear do dia. Nessa noite de intensa chuva decidiramos ficar em casa e você começara a divagar sobre imagens multiplicadas no reflexo do espelho, fizera até mesmo um trocadilho com uma parte do Apocalipse. Ria alto fazendo ilações de espelhos com Lúcifer, com legiões, anjos decaídos e alucinações oriundas da filosofia – tudo marcado com o sinal de Caim. Estava realmente se divertindo com tudo aquilo. Resolvi entrar na brincadeira abrindo o Zaratustra e comecei a ler em voz alta O Menino e o Espelho, ‘o que me assustou tanto em meu sonho que acordei? Não vinha ter comigo um menino, trazendo um espelho?’ Você foi muito rápido, pegou o espelho que estava pendurado na parede do corredor e com ele em frente ao seu rosto repetia ironicamente a última frase que eu acabara de ler, ‘Ó, Zara, olha-te no espelho’ agora, ó Zara, olhe para mim e verás onde estão seus pensamentos, sua vaidade e sua cobiça. Nihil me pegara de surpresa com a brincadeira, joguei o livro nas pernas dele que continuou a repetir sem parar que eu o olhasse para poder ver quem eu realmente era. Em meio a sua encenação de pijama e com aquele espelho se parecia mais do que nunca com uma criança, sem defesas ou abstrações complicadas. Foi um momento que despertou em mim um novo sentimento por Nihil e embora não suportasse pijamas, pois lembravam sempre noites recusadas a serem vividas, naquele momento foi algo mais do que sedutor e que acabou, também, despertando um outro jogo para dias de chuva, o jogo de Zara e o espelho mutante.
Mas nós não devíamos ter uma alma tão guerreira para com nossos caprichos de filosofia, precisávamos um pouco das expressões da normalidade e o jogo não durou por muito tempo. Passáramos a fazer teatro: não era a nós que estavámos vendo, mas outras imagens. Nihil se descrevera de formas malucas e inesperadas, criara tantos personagens dele mesmo que uma regra para o jogo foi inventada: era necessário uma fala que fosse a ligação entre a imagem fictícia do espelho, refletida somente por palavras, e o nosso eu real. Essa linha imaginária passou a fundir em nossas personalidades estranhas expressões a pairar sobre o que éramos, ou pensávamos ser, e o que não éramos em definitivo. Você se perdeu nisso antes de mim. Dissera, na última noite desse teatro, que estabeleceramos multiplicidades dentro de nós, a realidade versus imagem de fantasia, e que estávamos a arrastar nosso amor para a ficção e, por isso, corríamos o risco de perder nossos sentimentos genuínos um pelo outro, era pura loucura. Um amor perdurado em momentos de imagens falsas? Ora, não era só isso e Nihil sabia que não. Tentei argumentar que todos jogam o amor em fantasias, em seus phármakons particulares para vê-lo sobreviver por mais um tempo e que não coincidiam com o seu dia-a-dia, ao menos nós dois tínhamos consciência disso e nos divertíamos em momentos escolhidos. E depois era menos hipócrita, pois envolvia somente a nós dois. No ir e vir da luz do dia as palavras funcionam como receitas e diagnósticos escritos por outras pessoas, mas quando se tem avidez existencial, e não se sabe onde nem como vivê-la, as palavras acabam funcionando de outra forma. Seu comportamento me recorda Kant, o qual me dá alergia, logo você, Nihil, que o criticara estava agindo ‘como se fosse’, sim, como se fosse discípulo do metódico homem de pijama bordado com seu monograma, vestido-o, provavelmente, sempre no mesmo horário e com os mesmos movimentos. Kant não negou ‘a coisa em si’, simplesmente resolvera não discorrer sobre algo que não se pode conhecer, você se irritava com isso pois considerava uma forma refinada e sutil de negar a metafísica, que era sim uma negação — Kant fora sofista. Então, Karenina, você dissera, não posso falar sobre você pois não posso conhecer sua essência totalmente. Não vejo seu ser, sua essência, seu espírito, ou seja lá o que for, não toco e não sei onde está, então não nego que você exista, simplesmente não falo sobre você. Não é um absurdo? Criticara a frieza de Kant e sua negação da coisa em si que nada mais era do que a Metafísica traduzida na soma de todas ‘as coisas em si’ e acabara agindo com a mesma dose de sutileza para fugir de um simples jogo. Não negara nossas fantasias e nosso imaginário, apenas não queria falar sobre algo que não tínhamos controle. Você também era filósofo, Nihil, não gostava de ficar sem o controle sobre qualquer coisa que fosse e embora amasse o imprevisível e as loucuras que se pode chegar a pensar você precisava se manter dentro de uma certa segurança existencial. Eu começava a não entender o que realmente queria e não queria viver. Começávamos a nos perder demais com o amanhecer. A noite trouxera outro phármakon muito forte para nossas vidas. Estávamos rodeados e mergulhados em muitos deles e você se recusara a continuar viver o amor do phármakon-teatro, expulsando-o metodicamente, ainda acrescentara uma pequena ilação filosófica: adorava a literatura platônica pois ela lembrava um jogo poético de quebra-cabeça com peças invisíveis, no entanto, era insano vivê-la e a brincadeira não fora nada mais do que isso: montar dois mundos numa mesma tela em que as peças tinham imagens mutantes. E que nós próprios havíamos nos convertido em tais peças. E finalizara o assunto dizendo que ainda por cima fora ridículo tal coisa para duas pessoas que seriam capazes de morrer em troca de algumas respostas. Você quis voltar para a realidade e eu me decepcionara.
Eu concordava com você, Nihil, fora infantil, mas havia outras coisas por trás de todo aquele jogo ingênuo e você parecia ter esquecido que habitava cada vez mais sua prisão metafísica, pisava a cada noite em um novo líquido procurado insistentemente quando se cansava dos já existentes, parecia ter esquecido que lhe era insuportável a simples terra, o simples andar, o simples respirar — mesmo Kant um dia exercera fascínio sobre seu imaginário. Não sei o que o assustou tanto, perder a linha divisória entre o real e o fictício, talvez. O fato é que se assustara e eu senti que sua sensação de amar não estava mais no mesmo lugar. Eu não tinha a minima idéia para que novos abismos ela seguiria. Então também me assustei
Eu quis guiar sua mão e imaginar que sua desordem momentânea de sentimentos era um desespero também imaginário, passaria. Queria colocar essa sensação em você e diante do seu olhar sobre o espelho, mas você foi irredutível. Pensei em jogar sozinha o que seria um absurdo bem maior, não havia graça alguma em que meu eu real fosse o espectador de meu eu imaginário. A loucura não faz sentido quando se está só, se não há uma testemunha com um olhar que se estenda até estranhos atos, então não há loucura, não há nada, Talvez fora esta a razão que levara O Louco a recitar Zara em frente à Antiga Casa, eles não sabem respirar na solidão de suas águas, não tem sentido em ser louco isolado numa ilha com a água limitando a fuga somente sob os olhos de um deus nunca encontrado.
Nossa ambição de loucura era maior do que nossa coragem, testemunháramos por pouco tempo um ao outro. Voltamos para as menos perigosas com as quais já estávamos acostumados e que não fugiam ao nosso controle, voltamos a andar pela noite falando e divagando sobre filosofia e às vezes eu lembrava, com um sorriso nos lábios, de sua empolgação inicial naquela noite chuvosa, repetindo entre risadas e gestos engraçados,
‘o que me assustou tanto, em meu sonho, que acordei?’
Não estamos a sós em nossas águas — fantasmas, fragmentos e eternos retornos —
Terraço da Antiga Casa – Os amigos vikings que estavam por ali haviam começado a falar sobre o seu apego às águas dos mares e a magia da noite. Tel também estava por ali, era um autêntico viking, muito alto, com um olhar de suave sedução a nos viciar em seu belo rosto marcado por fortes linhas, as quais nos davam a certeza de ser ele um homem que sucumbira ao seu próprio abismo e sobrevivera a ele. Sim, era esse meu sentimento em relação a Tel, um sentir muito precioso, percebia abismos superados de alguém que conhecera a fundo a si mesmo, tivera esta coragem e se autosuperara transformando suas águas em uma existência diferente. O homem nascido com a marca de Caim fizera dela um andar pelo mundo — real e imaginário — que lhe trouxera plenitude e atos nobres. Ele se transformara em um grande homem, sem dúvida. O amava também, um outro tipo de amor que nunca envolvera uma aproximação além do abstrato. Agora, ele e Nihil, estavam a falar sobre a literatura celta, origem dos vikings, e da importância da noite para seu povo, pois quando os raios do sol começam a diminuir de intensidade, no final da tarde, é chegado o grande instante de cultuar o eterno retorno dos dias através da espera do anoitecer. Cada noite esperada faz reinar o retorno de um novo deus e enquanto a maior parte dos homens adormecem um desses deuses que, nunca repousam durante a escuridão, se prepara para vagar pela noite e despertar intuições a serem concedidas somente dentro da luz de meia-escuridão que desce sobre estes que já entraram em suas águas. Mas, ‘por que, da velha aliança entre a água e a loucura, nasceu um dia, nesse dia, essa barca?’, repete ele, o que estivera escrito em seu barco durante muitos anos enquanto navegara para lugares distantes. Sua frase, seu abismo de homem das águas, transcrito na madeira de um barco que ele insistia em chamar de barca, molhada por águas diversas, era ele mesmo procurando o sentido entre tudo aquilo que acreditava ter valor para si e aquilo que o mundo convencionara como loucura. Se ser noturno era um ato insano, se amar a filosofia era para loucos, se não suportar a luz da normalidade era ser visto com uma espécide de doença contagiosa, se querer conhecer o mal que também habita em nós e possui sua obscura finalidade, se ser fascinado por idéias que navegam há séculos por tantos e tantos lugares estranhos e se havia realmente uma ligação da água com a loucura, como escrevera Foucault, então, ele era um louco, mas um louco que amava tudo isso. Assim, não é uma dádiva amar coisas que a maior parte não dá o mínimo valor enquanto é essa maior parte que finge amar e ser feliz num mundo construído com ilusões de vidas previsíveis? Não é mais nobre navegar sem rumo certo do que andar pela terra percorrendo sempre as mesmas ruas porque o medo de reações diante do que não se conhece é maior do que a coragem de viver? Não é mais encantador habitar seu próprio mundo ainda que para isso seja chegada a hora de destruir todos os outros construídos até então? Ah,Karenina e Nihil, eu sinto uma profunda tristeza por aqueles que só andam na terra, eles possuem suas próprias águas, claro que sim, mas só de olharem para elas ao longe sentem medo, muito medo e lhes dão as costas. Não são honestos com o que amam. Pois amam aquilo que lhes é oferecido, não sabem, dessa forma, o que significa amar algo que se procura obstinadamente. Não sabem qual o sentido de amar alguém quando reconhecemos que no olhar desse alguém existe algo mais do que simples reflexos do mundo em suas retinas. Existe um espírito livre em todos os homens que anseia em se largar ao mar ainda quando em tempestades, turbulências e toda aquela imensidão que nos assusta em alto-mar. Quase todos recusam esse sentimento. Não sabem o quanto isso nos faz amar o universo com uma força que julgávamos inexistente. Eu possuía uma amiga viking que dizia não gostar de pensar seu próprio pensamento, não sabia por onde começar e se irritava com isso, tinha a impressão de que uma grande onda se formaria de repente e ela se afogaria. Passou a vida inteira dando as costas para seu destino, amado e ignorado a um só tempo. Fingia ser feliz. Se ao menos ela gostasse de brincar de felicidade poderia ao menos ser encantador, mas o lance dela era simular sem consciência. Nunca chegaria a ser cética, pois para ser cético é preciso antes ter acreditado com seu próprio sangue em muitas coisas, é preciso ter se sentido traído por todos os deuses que criamos dentro de nós e para estes, sim, é necessário darmos as costas para que não façamos isso conosco. Eu estou muito amargo hoje, desculpem esse meu jeito nietzschiano de filho das águas. Fiquei ali ouvindo tudo aquilo que Tel dissera a ao voltar meus olhos para Nihil senti o quanto eu amava aquele homem, sentado ali na minha frente, vestido todo de preto com um olhar que se perdia em outros mundos inacessíveis a mim. Eu jamais lhe daria as costas, pois eu sabia que muito embora não tivesse navegado tanto quanto Tel, Nihil se reconhecia em todas aquelas palavras e eu o amava mais e mais em cada novo retorno de noites. A morte não é o que falam sobre ela, Nihil, continuou ele, apenas uma longa e bela viagem como dos astros no céu e como as barcas vikings que são queimadas quando seu dono morre. É preciso ter um espírito livre para destruir um mundo e poder habitar outro. Não acredito em outras vidas, só nessa que vivemos aqui, então transformo esse ensinamento de meus ancestrais em um ensinamento para o presente, para o agora, no máximo para o dia de amanhã. Vikings acreditam também que os livros que lemos podem decidir partes do nosso destino, podem nos levar por esta rua ou por aquela seduzidos por imagens repletas de sedução e quando percebemos elas já se apoderaram de nossa existência, estão cravadas de um jeito tão profundo que se torna difícil de expulsá-las — como se comandassem atalhos de nossos destinos. Somos guiados por fábulas fascinantes como ocorre com a filosofia e quando pensamos sobre elas, muitas vezes, é tarde, não queremos largar seu encanto ou elas já tomaram uma dimensão tão grande que temos medo de abandoná-las e cair num vazio imenso, temos medo de olhar para as coisas sob um novo ponto de vista. O medo de seguir dentro de nossa barca pode surgir, como também a recusa pela terra, algo assim como não navegar muito ao longe, sem se diluir no abismo de tais águas, estar entre águas e terras. Já vi muitos amigos vikings ficarem nesse limiar e acabarem se perguntando: onde afinal construi minha montanha? Não se pode permanecer por muito tempo nessa área-limítrofe, com esse sentimento de que o balanço das ondas enjoa e a segurança da terra-firme causa tédio, não se pode morar para sempre em atalhos pois se corre o risco de vir a pensar que a falsa transparência, de tudo o que é aquoso, engana e que o pisar por sobre a falsa solidez da terra pareça uma nova pergunta insolúvel: para onde ainda posso ir? E, depois, concluir: ‘é isso então, a vida?’ É desse jeito que muitos se perdem, nesse limiar onde se torna perigoso permanecer por muito tempo e insuportável, se for para o resto da vida. Muitos não aguentam e acabam abreviando seu destino — querem retornar para onde não há mais retorno, querem ver um sentido infinito na terra, que é finita em seus limites, ou querem, ainda, ver o sentido somente nas águas, nesse vício filosófico — desrespeitando assim o limite com o qual a terra também envolve tais águas. Abreviam seu tempo. Eu, Nihil, e sobretudo Tel, acreditávamos nesse mundo errante, mutante, cigano mesmo, como vikings ao mar, cheio de estrelas que vêm e vão, deuses que também se cansam dos homens e dão um tempo. Noites repletas de mistérios que nosso olhar não alcança, uma outra realidade a se movimentar dentro dos nossos abismos particulares. Então inventávamos metáforas para nos sentirmos confortáveis, especiais talvez. Achava perigoso usar metáforas pois nunca se pode saber quais os caminhos que irão seguir. Por onde podem conduzir um destino que teima em se virar quando ainda não sabe o que um virar de costas significa. Metáforas não eram então mais perigosas do que a própria metafísica? Pois não era delas que a metafísica sempre fora feita? Algumas pessoas nos trazem a sensação de esquecimento e outras acordam nossas metáforas interiores evitando que vejamos naus de loucos apenas como uma existência errante. Quando algo em mim soar como um adeus, minha Karenina, ainda que não seja abstrato eu estarei de frente olhando nos seus olhos e pensando que gostaria que estivesse sempre comigo. E começara a pronunciar coisas sobre como os espíritos livres são ou devem ser: ‘é ter a certeza de que indo para longe nos tornamos prisioneiros de nossa partida, a água faz mais do que levar embora, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua louca barca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca. Essa navegação não faz mais do que devolver, ao longo de uma geografia semi-real, semi-imaginária, o eterno retorno de uma prisão escolhida, a água e a navegação têm realmente esse papel, fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada, é prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer. É esse parentesco imaginário que da noite dos tempos exigiu e em seguida fixou o rito do embarque. Uma coisa é certa: a água e a loucura estarão ligadas por muito tempo em sonho.'

As últimas palavras de Nihil, naquele fim de noite, tinham uma forte dose de Foucault misturadas com as idéias vikings de Tel e com todo o entusiamo por esse mundo maravilhoso, descrito por eles de forma abstrata, mas onde sentíamos, estava ali toda a emoção diante do universo das águas e o respeito pelo limite que a terra nos impõem. Eu sabia que este momento chegaria. Nihil decidira ir embora, queria conhecer o mundo, queria outros abismos. Nós parecíamos não ter muito a dizer um ao outro e, no entanto, nos amávamos. Ele queria viver outras coisas, o mundo é grande, minha Karenina, muito grande. Eu amo você, mas eu preciso ir, eu quero ir, sei que você entende e tudo é mais forte do que eu próprio. Sim, entendia, porque também era o que sentia, mas ela, ao contrário de Nihil, não poderia ir, não agora. Era o pior abismo a ser sentido continuar a amar alguém que não mais poderia ver, tocar, sentir sua respiração e ouvir sua voz, era a mesma coisa que o Nada. Nihil não seria mais o mesmo quando retornasse, mas outro homem, cheio de encantos, mas não mais o Nihil que conhecera. O tempo vivido em outras águas iria mudar o seu amor por ela. Lembrou de sua definição de tristeza profunda, lembrou nitidamente de como conseguira ajudá-lo quando ele estivera muito mal, suas palavras se mostravam agora para ela mesma. Soava em sua mente sua própria voz: não se espera ajuda nesses dias que parecem durar anos, é um mundo impenetrável, não se quer ninguém, atirado na areia num céu com estrelas e tendo o mar diante de você ao som de Wish You Were Here como ainda poderia sentir a dor sem que fosse uma nova sensação? Como não se deixaria levar por algo belo? Você iria levantar da areia úmida e em frente as ondas do mar sob uma noite, ainda que sem estrelas, murmurar somente para si: eu amo a vida, amo tanto que essa dor que eu chamo de profunda tristeza é apenas um outro nome para dizer que por amar demais, além do que meu coração pode suportar, invento palavras diversas, invento outros nomes porque não posso suportar amar tanto, eu morreria se isso não morresse logo dentro de mim, amar muito e, porém saber o quanto tudo é finito, que tudo um dia morre para nós ou para alguém ou para o mundo inteiro. Minhas palavras para Nihil retornavam por sobre meus pensamentos. Naquela hora em que eu estava a amar tanto a vida, o homem que exercera todo esse fascínio sobre mim estava indo embora. Eu não sabia o que pensar, eu continuaria a amá-lo mesmo sabendo que estaria se diluindo em novos abismos que chamávamos de viver intensamente. Ele pegara o violão nessa última noite já de outono e o vira tocar novamente o solo de Wish You Were Here e depois antes de começar a cantar olhou para mim, com aquele olhar que sabemos é de um adeus definitivo e fiquei ali, ouvindo aquela voz rouca, olhando para ele como se Nihil fosse um dos deuses pelos quais nos sentimos traídos, eu sabia que não era nada disso, mas naquele instante eu o vi recitar um hino para uma madrugada de despedida, como se um deus se desculpasse por promessas não cumpridas do seu coração. O seu lindo rosto de alma guerreira e seus dedos tocando naquelas cordas lentamente trouxeram à minha lembrança cenas do que viveramos desde o dia em que vira num amanhecer da Antiga Casa que era para ser como qualquer outro, então lembro do Mourão e do nosso amado Tel, recordo do Louco que ainda ronda a Antiga Casa, dos nossos amigos boêmios, sorumbáticos e vestidos de preto, lembro do mundo todo naquele instante, eu estava profundamente triste.
‘Então, então você pensa que consegue distinguir o céu do inferno, céus azuis da dor. Você consegue distinguir um campo verde de um frio trilho de aço? Um sorriso de um véu? Fizeram você trocar seus heróis por fantasmas? Cinzas quentes por árvores? Ar quente por uma brisa fria? Conforto frio por mudança? Somos apenas duas almas perdidas nadando num aquário, ano após ano, correndo sobre este mesmo velho chão. O que encontramos? Os mesmos velhos medos. Wish You Were Here ...’ Sim, Nihil, nós seríamos sempre como estas duas almas, noite após noite, andarilhas sobre a terra tentando superar antigos abismos e sentindo que tudo pode sobreviver por um tempo a mais. Nosso destino seria sempre o de colocarmos valor em nossos mundos imaginários, sem os quais jamais saberíamos continuar a viver. Ainda assim, em toda aquela estranha despedida eu nunca o vira tão feliz. As palavras dessa noite entraram em seu quarto para nunca mais sair. Também no meu. Ficou difícil depois dessa noite. Depois dessa noite eu não sei mais nada. O universo poderia ter se transformado em um ar infinito e ainda assim você só veria água no lugar dele, Nihil. Águas e Montanhas. Nós víamos o mundo de dentro dos nossos aquários, mas cada um retornaria a possuir suas próprias águas, naus de belos e malditos_ crianças proibidas que amam a noite dividindo seus phármakons particulares, dividindo ficções e realidades que se invertiam com o passar de estranhos tempos.
Nunca o vira tão feliz
Todas as crianças proibidas e malditas amam seus abismos
debruçadas por sobre o mar
Elas amam também a luz do sol
quando se debruçam lá de cima de suas Montanhas
E, então, já estão prontas para novamente pisarem por sobre a terra.
‘Apenas duas almas perdidas nadando num aquário
ano após ano, correndo sobre este mesmo velho chão’.
Gostaria que você continuasse aqui.
E nada mais.

Anna K. & Antigas e Belas Lembranças de Belos Sentimentos 1999_2000
1_Parte do Poema do Mourão por Paulo Michelotto.

20 de novembro de 2005

Onde?


Onde?

Só Anna é que sabe!

2 de novembro de 2005

Fragmentos de um manuscrito & outros delírios

Fragmento 1. Quando o amor acaba?
Na madrugada, acaba na madrugada.

Fragmento 2. Paradoxal, há uma madrugada em que se pode sentir que olhar para o outro é como se reconhecer em todas as águas sem se ter pisado em outras areias, sem ter visto se as estrelas que o outro via à noite eram também as nossas, fazendo surgir em nossa imaginação lugares secretos e sedutores. Lugares que nos trariam de volta o fluir de uma imagem: encontrar no mesmo olhar os espaços e tempos desconhecidos que um dia nos foram revelados. Um dia isso morre dentro de nós e não sabemos a razão.

Fragmento 3. Coragem. Medo. Guerra. Há alguém sempre de guarda contra seus exércitos interiores? Apreensivo sem saber o que eles estão planejando? A dar-se conta apenas quando uma nova guerra inicia? Sem saber de que lado ficar? Então pensa-se: um deles precisa ir embora, precisa, uma longa e cansativa guerra que nos faz oscilar entre amor-ódio, luz-trevas, saúde-doença, noite-dia, tristeza-alegria, calma-turbulência, areias-ondas, terra-céu, navegar-andar. Talvez, conhecer uma alma guerreira, destruísse o que precisasse ser destruído e salvasse o que precisasse ser salvo. Mas a guerra continua. Exércitos vivem ainda dentro do coração. Defesas ensinadas lutarão ainda entre si? Eu gostaria de saber porque um homem de alma nobre permite que exércitos ainda o habitem. Confiar em sua coragem e em sua fraqueza? Eu gostaria muito de saber.

Fragmento 4. Um quadro de paixão e simplesmente um dia vemos escrito ‘the end’. Deveria haver algo mágico que pudesse manter o amor de duas pessoas por toda uma vida, isto seria maravilhoso. Tão estranho, num dia morreríamos por alguém, no outro não. Como pode tal coisa num sentimento que deveria ser uma exceção? Talvez aí o erro, por pensarmos que é algo especial queremos que tudo que o envolve seja também especial. O lugar mais escuro é sempre debaixo da lâmpada. O algo vivido no presente, no agora de nossa respiração não pode ser vivido em pensamento? então nos perdemos, queremos juntar as duas coisas, mas a luz da lâmpada nos cega.

Fragmento 5. Mas, ainda não. As divagações privadas soam hoje como exércitos a incomodar: a racionalidade como um olhar cínico; o tempo, com o olhar de coisas que já não fazem sentido; o espaço, diz que algumas coisas são quase impossíveis de serem mudadas e que moiras gostam de aí permanecer: no espaço, pois é daí que elas tiram sua força e seu poder sobre nós.

Fragmento 6. Falta algo para deixar a vida mais densa, talvez a guerra vivida longe de nós mesmos. Eu preciso soltar minha 'alma guerreira'. Talvez você também. Eu lembro quando você dizia: 'mas não queria te dizer nada disso, pois é meio filosofia e filosofia me parece meia guerra, um certo medo.' Shakespeare disse que onde crescem os amores crescem os medos. Onde o medo cresce, cresce o amor? A filosofia faz meu amor crescer na mesma proporção que o medo, medo de sucumbir à vida, só o que me dá forças é saber que vou sentir você e toda sua sedução em meus lábios. Sinto falta de suas mãos apertando minha cintura e me levando até onde você está, você me salva do medo, mas não do amor. Shakespeare estava errado.

Fragmento 7. Então, não é mais necessário ‘ter um caos dentro de si para dar luz a uma estrela cintilante’? O caos não é mais importante do que o amor? Ainda não consegui fazer nascer esse caos dentro de meu próprio sentir e se há razão em criar no meu imaginário, uma estrela que me desse o caos, teria que, mais tarde, acabar por libertar dele. Que garantias possuímos? Talvez a encontre em algum lugar do Hades ou nas regiões descritas por Dante na Divina Comédia? Sim, mas quanto do Hades já não pisamos aqui mesmo sem saber que o estamos fazendo? Sim, quem poderia saber? Apenas um limiar entre o limbo e o que não conhecemos, pois há sempre um devir em tudo o que habita em nós, assim, para onde eu poderia voltar a olhar depois de ter visto tal estrela?

Fragmento 8. Não sei o que quero ouvir, se ainda quero. Sei que tenho insônia em demasia. Quisera ter mais, mas tenho que ser normal. Eu me esforço, mas quando minhas forças pedirem ajuda, chegando ao final, quem as substituirá? Eu sim, já me sinto substituída por um algo que me escapa ou talvez seja pelo cansaço que, enfim, o mundo nos impõe com seu aliado, o tempo. Vejo, nos olhos e nas faces, uma desilusão retraída. Em outros tempos se sentiria de outra forma?

Fragmento 9. Disse, há três dias atrás, que só me compreenderia quando o supra-sensível nos proporcionar tudo o que pretensamente queremos saber aqui. Antes, eu deveria desejar que com a morte eu é que viesse a compreender-me. Morto? Mas quem se encontra morto? Um grande choro? Não, ninguém parte somente para entender o que se passou.

Fragmento 10. Por que tudo aquilo que pode nos trazer felicidade antes tem que passar por outros sentimentos contrários? e que, além disso, sem trégua, acabam por destruir os instantes que poderiam ter sido belos? Alternância do mito do sol? Da barca celeste que levava o sol do oriente para o ocidente pelas águas subterrâneas do grande rio Okeanos, fornecendo assim luz e escuridão em uma viagem infinita e circular? Em uma alternância que nos cega e nos vigia, nos embala e anestesia. Quisera eu navegar nesse rio subterrâneo e ser levada pelo seu sopro quente, nenhuma tempestade entre o céu e a terra, caos universal, poderia fornecer tudo que é dado pela imprevisibilidade da delicadeza da imaginação e que a maior parte despreza e tenta viver com a regra do melhor instante: aquele que julgou ser o melhor de toda sua vida impõe o destino para o não-viver e o não-sentir — dos belos instantes.

Fragmento 11. Também o amor, dizem, é levado dentro da barca celeste e sua natureza tão dualista faz com que o caos retorne. A estrela talvez se sufoque com o seu brilho, com sua luz e afogando-se em si, que cintila, volta à escuridão onde o não-ser não sabe de nada, não sofre e não produz nenhum brilho e, portanto, nenhuma dor.
E eu a queimar inteira no lugar da chama que um dia venceu o caos. E o amor onde está?

Fragmento 12. Começo a crer em moiras e não quero vir a me comprometer com a felicidade. Querer que não é querer, sem existir não pode ser. Luto por um olhar ou um adeus dos deuses aprendizes. Salvar? Se for amor, sim. Do contrário, aliados à distância, não seremos capazes de sentir a nossa ausência diante da não-presença um do outro. Talvez facilmente substituída. O mundo é tão cheio. Cheio de vontade. De pessoas. De querer e não querer. Tarde, já tarde.

Fragmento 13. Quando meu pai morrer sua alma ficará comigo ou com o meu irmão? Ou com nenhum dos dois? Se ficará? E por que razão ficaria? Então penso no meu diário. Só tem atrapalhado minha vida, a cada vez que a pessoa que pensei amar o abre. Melhor seria não ter memórias? Quando abro os diários dele penso que sim, suas memórias me entristecem, eu não estava lá e vejo agora somente palavras. Quem dera pudesse ler a verdade dos seus sentimentos e os sonhos que teve e os que não teve. Vejo o aparente, nunca a conhecer o que já foi. Memórias e diários, bom tê-los. Triste também. Então percebo como tudo isso é passageiro e sem importância, mas minha alma acha que memórias e diários têm muita importância mesmo. E eu sofro por ela pensar assim. Que relação há entre meu pai e diários? Memórias, sim, talvez as memórias que ambos carregam consigo.

Fragmento 14. O que é a nossa vida? Conflitos o tempo inteiro. O que poderia ser maior do que isto? Não há filosofia ou literatura que possam ser maiores do que esta experiência, creio eu. Existe algo que não compreendemos e que sempre será maior do que tudo, será sempre o que lembraremos quando, num dia qualquer e sem importância para a continuidade do mundo, viver se resumir a lembrança do que foi feito de nossas vidas. Manhã quente e gélida.

Fragmento 15. Se tenho um desejo ilimitado de ser amada? Não, apenas de ser livre para amar e não estar presa à realidade das coisas. A realidade, sim, tão incômoda, não é o que eu gostaria de viver. Mas o mundo é um só. Não posso transportar-me para outro lugar a não ser para dentro de mim mesma. Também não consigo viver lá fora, não é real para mim, mas a realidade tem suas exigências como o fato de não aceitar conciliar o que dela não nasceu. Onde está minha morada?

Fragmento 16. Ainda procuro pelo devir subterrâneo, pois não quero perguntar porque o tédio se instalou e então a tristeza veio a me absorver, diante de um sábado em que nada muda. Nada muda.

Fragmento 17. Os hinos que me embalaram a estar só provinham de uma única voz, de um mesmo apelo, de um só lugar. Rendia-me a eles ‘every day’ — a eles, só a eles e ao seu balanço de choro contido, como se da esperança sobrasse um sussurro, ainda uma palavra, também dos hinos. Era assim. Então, e nada mais, era assim. Por que estar só é como chover sobre uma cidade em ruínas. Mas não é tudo, quando somente a metade é que se faz estar. Tudo, que é metade. Nada há que terminar. No meio se desiste? Ou depois da primeira vitória, quando se foge covardemente? Hoje, só o que ele faz me preocupa, um quê de algo sempre escondido. Pensamentos a trabalharem sem parar em busca do que se ocultou por detrás de tantos ‘quês’. Se, ao menos, o que ele sente corresse por alguns segundos nas minhas veias, eu teria certeza que sente o que eu gostaria que sentisse, para sempre, ‘everyday’, e eu não precisaria mais render-me aos hinos. Ou a mim.

Fragmento 18. Estou cansada de grandes idéias a serem narradas, quando no mundo, tudo já foi dito. Estou cansada de escrever sempre o mesmo, quando na alma reza-se pelo não dito. Entre o cansaço de tudo isso, carrego no corpo o dito e o escrito, o mal e o bem, e o nada que sempre fito.

Fragmento 19. Digo que o outono nasce, enquanto o verão está a surgir, porque gosto do outono. Minto que nasce, para mim então é isso. Nasce o outono. Nasce a insônia entre o ciclo constante da inconstância que sou. Velhas páginas decoradas já não preenchem meu vazio. Elas mudaram com o tempo? Tudo me é fraco e sem sentido. Tudo serve para alguém. Fernando Pessoa aquece meu frio no verão que chamo de outono. Ele, que descobriu a verdadeira metafísica, tem sua lápide nos claustros do grande mosteiro. Ele, que a tantos dá sentido, rodeou-se da esterilidade do espaço. Respire ao lado de seu túmulo e sentirá o ar insípido. No entanto, rezei a ele, em pé, por um caminho que possa libertar-me ou conduzir-me em definitivo ao caos que quero viver. Expressão de tristeza pessoana? Mas tenho ouvido muitos reclamarem que desde que Pessoa se foi muita coisa passou a sumir da terra e que todos nascem tão iguais que ele faz realmente muita falta. Quisera eu também ser feliz no mundo em que acredito. Saudades de alguém que não conheci.

Fragmento 20. Só pode restar um tipo de consciência: a de que tudo é possível a qualquer momento e seu inverso também é verdadeiro, pois diante da não-possibilidade de acontecer existe a possibilidade de que aconteça, ainda que depositemos aí uma falsa e ilusória angústia. Nascer uma vez mais para a impossibilidade de algo diante das inúmeras possibilidades que o mundo nos abre e que não são exatamente aquelas que queremos vivenciar. A angústia nasce da impotência de que não se pode contrariar o destino que nos cabe. Qual destino?

Fragmento 21. Não pretendo evocar o passado, apenas bater em sua porta amarelada e de pintura envelhecida.

Fragmento 23. Todos os meus desesperos têm uma data marcada: amanhã. Meus sonhos esvaziaram-se. Minha alma também. O que posso esperar de um sossego tão intenso? Sinto dor física no abdômen. É bom saber de onde vem a dor e que ela vai passar, vai passar. A outra, não passa nunca e não sei de onde vem, e assim continuo os meus dias. O dia hoje está parado, parece que as pessoas o esqueceram, o mundo morreu e eu não vi. Os outros viram.

Fragmento 24. Naquela noite, senti a estrela da qual Nietzshe falava pulsar nos meus pensamentos. Percebi que ninguém preencherá a dor do meu vazio. Como algo que um dia sentimos com tanta intensidade pode sumir e por quê? Eu não soube diferenciar angústia do amor que julgava desaparecer? Percebo, não sem a dor, que o caos é apenas um mal-estar a doer no centro do meu peito, na garganta e a alastrar-se como uma peste. Já não o controlo, mas hoje sei o que é capaz de fazer comigo. Não quero aceitar meu imaginário e então é como se eu cometesse um assassinato comigo mesma. Preciso matar isto que vive em mim? Preciso matar uma parte da qual sou feita? Domingo de sol, de chuva e de frio, como eu, domingo de dor e de descobertas. Domingo, hora de deixar-me. Hora difícil não-ser mais eu — e no entanto amo esse imaginário que habita em mim.

Fragmento 25. Preciso de presenças? Já não sei do que preciso. Chorar é bom. Crer também. Como dar de presente à pessoa que se ama um permanente desespero? Eu sei que um dia eu vou mudar e até achar legal a normalidade do mundo, as cores do tapete e o cheiro do amaciante na roupa recém-lavada. Dizem que a angústia costuma nos visitar durante uma estação e depois, demora para voltar. Angústia minha não diferencia as quatro estações, indiferente_ para ela o ano inteiro é primavera. Em qual delas a estrela cintilante é visível na escuridão do céu?

Fragmento 26. Antes eu pensava que se quisesse viver meus sentimentos verdadeiros — todos eles — teria que viver os meus medos e também o desespero. Há o vento lá fora. Outras coisas aqui dentro, onde estou sentada, escrevendo. E há também a consciência de que sou feita de sentimentos dos quais não preciso. As coisas que mais precisamos são completamente silenciosas, delas nada sabemos: inconsciente, imaginário, sonhos. E todos estes silêncios provocam um novo e grande silêncio dentro de mim, sobre o qual também nada sei. Noites escuras silenciam e todos um dia silenciarão.

Fragmento 27. Gostaria de ter mantido a ilusão do amor. Quebrou-se em tão curto espaço de tempo. O encanto disso se foi e tudo recai sobre mim novamente. Outra história me aguardará? Histórias podem salvar. Em sua essência podem ou não quebrar o encanto.

Fragmento 28. Sonhei com as partituras de uma música melancólica como se fosse o Réquiem de Mozart, às vésperas da tristeza certa. Depois, esta música transformou-se em Carmina Burana, a misturar-se com um conto, e novamente as partituras. Perguntou-me o que eu pensava do conto sobre a tristeza que ali estava. Eu disse que, caso tivesse sido eu a escrevê-lo, tentaria explicar as sensações de quando começara a intercalar partituras com palavras. Sim, faltava algo, talvez a verdadeira transição dos sentimentos para as palavras. Das palavras para a música. E da música para as vésperas da tristeza certa.

Fragmento 29. Estou em outro lugar, num lago de águas verdes-acinzentadas e turvas, com sons contínuos e baixos próximos à margem, barulhos que posso escutar. Da margem eu aceno, não sei se quero voltar. Permaneço no lago. Hoje, quando anoiteceu, eu dei um passo. As águas não se mexeram, estão esperando meu próximo movimento. Nas águas, uma verdade e tudo e na margem também.

Fragmento 30. Quanto tempo levarei para chegar até onde quero ir? Será que ainda estará lá o que quero? E se não estiver, o que eu faço? Volto ou não para o meio das águas?

Fragmento 31. Quando estamos tristes nossas raízes nos traem? Vem à tona o queremos dissimular? Mas onde estão minhas raízes se ainda moro na mesma casa? Se tudo em mim fosse dissimulação, como eu ousaria falar em raízes?

Fragmento 32. Saber se identificar num mar de nomes? Mas como fazer isso quando é a chuva que tomba do céu? caindo no mar turbulento que nos foi dado, como então se identificar num abismo que tomba há séculos enquanto a Noite nos nega a estação que dura o ano inteiro?

Fragmento 33. Inverter prioridades tidas como absolutas e deixar pré-conceitos para um outro dia. Será que pode dar certo? Coloca em risco a estrutura de vida que se estabeleceu? Troca-se os pré-conceitos pelos pré-receios?

Fragmento 34. O Bem, sentimento? Preocupei-me vários dias em como o poderia viver. Preocupei-me demais. Padronizei a forma de pensar e agir. Sem quebrar o estabelecido foi chato, sem graça, morri por alguns dias. Prefiro o Bem de outras formas.

Fragmento 35. Adoro esquemas sacros. Não consigo entendê-los. Nos dão uma garantia de nossos loucos atos de ceticismo, silenciosamente. As belas estátuas que nos miram sem pedir decifração. E nós?

Fragmento 36. Crises, sim, de todos os tipos, já as tive, afetivas, existenciais, e, então, a Filosofia. Sinto-me tão incomodada há tanto tempo, e há muitos meses sem re-ação, o que me leva a crer que crises não são temporárias. A re-ação, apenas uma síntese sobre o que está a incomodar, somente isto.

Fragmento 37. Hoje vi, pela primeira vez, o portão aberto. Sair ou não sair? Permaneci. Se o portão inventasse de fechar, com uma brisa ou uma tempestade, eu sairia rápido. Estou observando. Penso que há algo mais.

Fragmento 38. Antigos manuscritos para novos sentimentos? Sei que durmo. Nessa noite, repouso em meu leito. Toca o telefone e não respondo. Durmo em meu quarto. A dor da perda transforma, sabemos. Longe, pergunto se estará com dor. Não tenho como saber. Como se viajasse sem dar notícias. Existe dor maior? Da incerteza de uma dor que não a nossa?

Fragmento 39. Possuímos formas diferentes de dar atenção. E eu, que escrevo isso, não compreendo o que seja isso. É possível produzir muita coisa sem entender nenhuma delas. Dividir com quem?

Fragmento 40. Deus, à diferença do homem, não tem necessidade de amigos, a causa disso é que para nós o bem vem de algo que não somos nós, mas Ele é para si mesmo o seu bem. Sinto-me deus ou o mal habita em mim. Nunca me sinto satisfeita com o bem que conquisto, sempre quero outro e mais outro. O conceito não está certo. Perdi-o no caminho.

Fragmento 41. Quando o trato bem, comove-se. Não está preparado? Deveria ser o contrário. Eu o assusto quando sou normal? Dura pouco.

Fragmento 42. País estranho
este que habitamos exclusivamente com outra pessoa. As coisas criam uma dimensão mais definida e maior, bem maior do que antes. Lá fora tudo parece bem calmo.

Fragmento 43. A minha preciosa independência emocional. Criei laços de afetividade fortes com ele. E agora sofro com intensidade, não sei o que fazer com isto. Independência emocional. E o que é ser dependente de alguém? Ver os pensamentos, assim, no papel, congela, nos torna mais cruéis do podemos ser, a dimensão do sentido passou por mais uma das sensações: nosso olhar sobre as palavras. Mas não preciso explicar nada aos meus olhos, graças a Deus. Bom quando não se precisa explicar nada. Explicações complicam, implica o que você pensou, o que disse, na forma que disse, o que foi interpretado, em que sentido, como, por quê. Distante, muito distante. Explicações não tem sentido de ser. Vagas, muito vagas, erro de percurso, esquecer, melhor assim, não ver, não esperar e desenvolver-se, contrário a envolver-se. Melhor calar.

Fragmento 44. Escolho racionalmente a quem dedicar minha afetividade? Se assim o faço, não sou afetiva pura e simplesmente e, sim, racional e levemente interessada em algum tipo indefinido de algo a que deram o nome de afetividade. Ser afetivo com quem: ou o ser-afetivo faz parte do nosso ser ou não o faz. Mas, o que se pode fazer com a afetividade que não se quer sentir? Sublimá-la?

Fragmento 45. Há os que pensam que existe glamour na depressão. São aqueles que vêem este mundo particular do lado de fora_ só observam e nada mais.

Fragmento 46. Hoje a realidade pareceu-me interessante, bela. Mais do que isso, prestei atenção às pessoas. Ainda não observo o que vestem, seus calçados, saias ou gravatas, mas já ouço suas vozes reais e as palavras me soam diferente e estão distante de mim e do papel. Nenhum sentimento triste me incomoda hoje. Nada interfere no que sou, sinto-me entorpecida ou anestesiada, não saberia dizer. Morri?

Fragmento 47. Acordei pensando sobre o fato do inconsciente existir mesmo ou não. Ser apenas ficção, afinal, o ponto de partida de Freud. Terei perdido tanto tempo em compreender-me, em ler meu inconsciente, que é provável que eu ficasse triste. Algo como ser traída pela humanidade que inventou de fazer ficção dentro de mim, dentro de cada um de nós, nos induzindo a uma concepção de alma falseadora de tudo o que somos. E nada mais resta no mundo senão a ficção dos livros e do inconsciente?

Fragmento 48. Maldito inconsciente, se existe, guarda tudo sobre nós sem trégua. E guarda para um esquecimento que se faz lembrar sutilmente. Fizesse algum ruído seria mais fácil. Nenhuma pista. Nada. Quanta elegância. Faz metáforas o tempo todo. Tenho mais o que fazer.

Fragmento 49. Tenho medo. Medo do meu sentir. Das poucas reações das quais sou capaz. Não sei de nada. Só sei da minha instabilidade de sentimentos. Como posso exigir de mim sentir a mesma coisa daqui a duas horas que sejam? E o que é sentir a mesma coisa? É possível?

Fragmento 50. Quando conheci o mundo real, fazia muito frio, pingos fortes caíam do céu sem parar. Nasci num dia assim. Sou o dia em que nasci.

Fragmento 51. Os sonhos? Bem, os sonhos são a desordem dos pensamentos enquanto descansamos. Nada mais do que brincadeiras do repouso. Uns brincam demais, outros nada.

Fragmento 52. Por que Deus nos deixa viver tanto tempo com tantas incertezas? Ou ele não existe ou ele sonha como nós.

Fragmento 53. As palavras, o que são exatamente as palavras? Aquilo que um dia vi, mais as sensações de quando vi ou de quando estive a lembrar? E, dessa maneira, passo as sensações que são minhas para as palavras. Ainda assim, pergunto-me o que são elas, além de confirmarem o que senti e o que não senti.

Fragmento 54. Meu sentir é algo só meu. Ninguém poderá senti-lo. Talvez algum dia, não sei. Por enquanto me pertence. Algum dia, expressão de esperança e momentâneo desalento, algum dia, quem sabe, as coisas possam ser diferentes.

Fragmento 55. Diz o existencialismo que a existência precede a essência. O homem será antes de mais nada o que tiver projetado ser. Ou seja, como não há determinismo na essência e esta se faz durante a existência, o homem tem condições de fazer sua história, de mudar o curso do destino. Mas eu não sei se as mudanças que ocorreram na minha vida partiram de minha essência ou de minha existência que se fez essência naquele dado momento em que algo mudou. Como saber a linha que demarca o que é e o que não é? O que foi feito e o que não foi?

Fragmento 56. Reclamou do meu estado linear. Antes, eu alternava o humor de minuto a minuto, agora não. Preciso me acostumar com tanta linearidade e boa paz. Eu mesma me sinto entediada com minha linearidade. Não suporto pessoas assim, tão estáveis emocionalmente, previsíveis, sem graça. E estou ficando igual, sem vida. Não há coisa pior do que pessoas lineares.

Fragmento 57. Pode a depressão virar um tédio total? Na verdade, dois infernos: o tédio natural não tem cura; a depressão também não, mas pode ser tratada. O segundo grupo pode ser mais interessante, pode-se eventualmente experimentar o tédio quando nos sentimos vencidos pela angústia. O tédio, afinal, é como um sono longo e cheio de torpor. Estou torporizada.

Fragmento 58. Adoro a chuva, as trovoadas, o escuro que se faz, o vento frio que balança as árvores. Todos se recolhem e o mundo então pertence à chuva. As pessoas se escondem, fecham-se em suas casas e em si mesmas. A chuva se apodera de tudo. Se dilue para depois sumir completamente. E o resto?

Fragmento 59. Ele era freudiano, não acreditava na imortalidade da alma, apenas no eterno retorno dos sonhos. Parece que só eu me desespero com o fato de que as pessoas que mais amo não existirão um dia. Vivem como se fossem imortais e isso não interfere em suas vidas, na minha sim. Na infância já era assim, só que eu não sabia que as coisas vividas na infância reforçam-se com o passar do tempo. Penso que agora é tarde.

Fragmento 60. Pensei em chorar. É, deu tempo para pensar em chorar. No entanto, senti que as lágrimas cairiam no fino tecido da minha blusa e secariam em seguida. O que restaria dessa noite? Uma vaga memória perdida no tempo. Existem formas diferentes de dizer a si próprio que algo está sendo produzido em demasia dentro da alma, não como lágrimas que evaporam em finos tecidos, pois o chorar em si não contém diferenças. Não se tem como criar uma lágrima que ao cair vire uma mancha artística. Impossível transformá-la em obra de arte e, no entanto, concedida não é mais do que poderia ser.

Fragmento 61. Não queria dar tanta importância às palavras, tinha receio que não sobrasse nem ao menos um roçar delicado e infantil para o silêncio. O silêncio existe e é tão solto, a ser feito de areia entre os dedos ou de lágrimas contidas. Quando não-contidas levam um pouco da dor para longe do corpo. A ilusão se desmancha quando tudo retorna a uma razão para se fazerem vistas. Eu não olho para elas. Corpo estranho que se move. Silenciosas e lentas. Muito lentas, a crescerem e a se reproduzirem muito, muito lentamente.

Fragmento 62. Impressionante como os momentos de lucidez são dolorosos. Hoje senti minha voz quase num sussurro e movimentos ausentes. Era a lucidez e agora não sei o que fazer. Não é terrível não saber o que fazer? Pois eu não sei o que fazer, espero que seja temporário como lágrimas e coisas assim.

Fragmento 63. Reclamo da falta de liberdade. Virei escrava de meu próprio pensamento. Penso nas imagens, nas palavras, não sobra mais espaço. Gostaria de pensar quando eu quisesse, mas não, o quando quisesse ocupa o tempo todo. É dessa pequena liberdade da qual falo. Está dentro de mim e não tem nada a ver com a vida exterior. Tudo dentro de nós, nada além, o exterior se forma e se distorce.

Fragmento 64. A vida lá fora é uma escultura moldada constantemente pelos nossos olhos e pelas nossas sensações. Escultura onde cabem todas as formas e cores, feita de tempo e de ausência.

Fragmento 65. Estou mais afetiva com o mundo. Mas, na maioria das vezes, só consigo enxergar meu próprio pensar. Às vezes, recordo a personagem da Hora da estrela, de CL, ‘incompetente para a vida’. Aliás, Fernando Pessoa já tinha dito isso. Todos dizem coisas já ditas alguma vez em algum lugar, porém com alguma diferenciação, o que torna, sem dúvida, tudo levemente novo e genial. Não em sua essência, é claro, mas as idéias são sempre as mesmas. Fico pensando na Macabéa, onde e como um ser humano, ‘incompetente para a vida’, poderia vir a se tornar competente para outra coisa? Para ‘isso’. E o que é ‘isso’? Isso é o isso que o Freud transformou em id e depois em inconsciente. De novo ele, o inconsciente.

Fragmento 66. Li, em Samuel Rawet, sobre as pessoas paranóicas. Elas completam atitudes, frases, gestos e olhares de outras pessoa, dentro de suas mentes. Passamos a vida inteira achando isso, pensando aquilo, que todos afinal são um pouco paranóicos. Qual o limite de ser saudável e de se estar pisando no primeiro degrau da paranóia? Difícil dizer, melhor classificar o ser humano como sendo paranóico e pronto.

Fragmento 67. Penso em dormir e em sonho voltar para um lugar perdido nas minhas memórias, mas os temores me invadem. Como seria bom não pensar em dormir, não sonhar, não voltar.

Fragmento 68. Tudo o que eu quis dizer foi o seguinte: a euforia não foi em direção ao vazio. Assusta sentir estabilidade interior pela primeira vez, pergunto-me se será para sempre. O para sempre existe? A vida é muito estranha. Não sei se é ela ou se somos nós a conspirar contra nós mesmos, a aproveitar qualquer frase mal elaborada para por tudo a perder. Ainda assim, vejo que não me bastaria somente o que eu poderia ver, duraria pouco. Seria frágil. Apenas uma tentativa de alcançar algo que, de certa forma, ele não teria dentro de si. Impossível. Eu estaria enganada.

Fragmento 69. Caminho de sempre. Passos nem receosos, nem deixando de sê-lo. Nada tinha para dizer-me, além de observar o suor que grudava nas roupas do meu corpo, jogando minha alma doentia para longe, como se o horizonte existisse longe disso. Mas do que pode ser feito um horizonte que não se enxerga? O que faz um cigano quando é deposto? Será que ele deixaria que eu molhasse os meus pés na madeira úmida e salgada? Precisaria ancorar a mim mesma até que resolvesse partir em busca de passos não-receosos. Será preciso ir tão longe de você mesmo para enfrentar uma odisséia? Não somos nós mesmos a nossa própria? Tão grande em nossa montanha particular e quase inacessível aos outros? Mas eis que já tocava a minha, suavemente, enquanto ainda nenhuma montanha esperava Zaratustra.

Fragmento 70. Não é durante à noite que as cidades e os reinos sucumbem? Será que é à noite, também, que os sentimentos refluem sobre si mesmos temperando tudo num só corpo de mesmo corpo?

Fragmento 71. Como são os horizontes que nunca viu? Conseguirá ainda viver em você mesmo sem pensar neles? O que faz um homem de ‘alma guerreira’ quando deixa de sê-lo? Você vai deixar que eu molhe meus pés na maderia molhada pelo mar que abrigou o barco que o trará de volta para mim? Estou cansada de ancorar a mim mesma num lugar, que eu sei, sem porto. Quando você retorna?

Fragmento 72. Noite de des-tecer a tela que fiz durante o dia. Não é durante à noite que devemos vigiar quem somos?

Fragmento 73. Angustia-me o universal que também serei, que um dia não mais se olhará no espelho. Sim, chega, chega dessa estampa falsa, então direi. Melhor olhar para si, sem ver-se concretamente, carregar a alma com seus vícios e distribuí-los para que a consciência do que acumulamos não nos engane. Quero todos eles estampados a minha frente, gritando que são meus. Vícios meus e tudo o mais que empurrei para dentro de mim sem saber ao certo que aumentariam o que não quis ser. Meu coração sente. Eu sinto.

Fragmento 74. Estou escrevendo deitada entre cobertores e travesseiros pesados. Não há nada feito de suaves penas de ganso por aqui. Também nenhum que eu tivesse usado na infância. Envelheceram mais rápido do que eu ou minha avó. O quarto era dela. Envelheceu e morreu. Não parece que dormia aqui. Cigarro no bidê ao lado, permito-me fumar no quarto. Ela gostava de cantar no escuro. Eu não canto. Gosto de luz artificial. Gosto do quarto. Apago o cigarro, a luz não.

Fragmento 75. A única certeza é essa dor de que algo se perdeu. Sei que não voltará. Como faz tempo. O tempo da infância parece uma outra vida, de outra pessoa, olhamos para trás e sentimos não ter sobrado muito. Negamos nossa ingenuidade diante do mundo, e isto é bom. Então, negamos a infância e a falta de clareza que a ingenuidade nos obriga a viver. Na infância somos seres livres, apesar da ingenuidade?

Fragmento 76. As dores mais profundas são as universais, aquelas que todos poderão sentir. Quem irá amenizar a dor? Ninguém, pois por ser universal é que é assim. Independente de tempo, de Anaïs Nin ou de qualquer coisa classificada como loucura. Eu aqui. Ele lá, distante. Também universal. Porém, sem dor.

Fragmento 77. Descubro hoje que o único espaço que era dele converteu-se no sofá estampado da sala, mais o monitor do vídeo da televisão. Um sonho se mistura a isto, duas pessoas dormem num quarto, outras duas limpam a casa, é madrugada, amanhecerá e o sonho terá sido sonhado. Termino de ler Henry, June e eu, da Anaïs Nin e descubro também que tudo foi menor do que pensei ter vivido. Percebo, com aquela tristeza que torna tudo reducionista, que a realidade foi normal e que a loucura, imaginária. Tudo que vivi foi mais intenso dentro da minha mente do que para o mundo de outros que continuaram a circular, sem exigir exageros do seu próprio imaginário. E esta tristeza reducionista, talvez todas sejam, diz ao meu tempo interno que duas pessoas, ou mais, ainda dormem no quarto ao lado e que é madrugada, que será ainda por um longo tempo.

Fragmento 78. A imaginação não é um estado, é a própria existência humana, William Blake. Não possuo um estado imaginário, já que não estou num estado de imaginação. Seria preciso estar dentro-de, para que fosse possível nos constituirmos de qualquer estado que seja. Não estou dentro de minha própria imaginação, senão que sou a própria imaginação, pois a condição de existência humana é que me afoga na ação imaginária, aliás, a única ação que conheço verdadeiramente.

Fragmento 79. Já morei em diversas cidades. Sempre volto para visitar meus pais. Cidade pequena, pessoas vivendo devagar. Não é campo, mas é como se fosse. E como é triste quando o sol se põe, tem-se a impressão que o tempo esquece que existe. O tempo deixa de existir em lugares assim, deprime. Tempo parado, assemelha-se à morte, sem movimento. Quando o sol se põe, faz a morte existir. E as pessoas continuam a respirar pausadamente, não importando que assim seja. Mas eu me importo. Venho de fora. Sinto-me deprimida. Prefiro a correria da cidade grande. Bastante movimento, vida, muita vida. Será mesmo isso, vida, que pensamos sentir com as luzes e os movimentos de um lugar que nunca dorme?

Fragmento 80. Ser menos exigente para se demonstrar mais o amor que se possui. Trata-se de exigência que se carrega, espontânea. A espontaneidade tem muito valor, foge a neuroses e ao controle de nossas atitudes tão bem construídas, também foge às defesas do nosso inconsciente revelando como se manifesta no seu exterior do interior a que foi confinado e a que nos confina. Como ele não deve aparecer, logo nos recuperamos dessa doença — a espontaneidade — e ignorando-a esperamos que não cause mais problemas existenciais. Fora com isto, viva o autocontrole e o inconsciente.

Fragmento 81. As coisas que vemos nada podem fazer por nós. Instantes elevados de admiração. E depois, voltamos a nós.

Fragmento 82. O espírito livre é aquele que não está a amar ou apaixonado. Do contrário, não livre, sartreanamente que seja, apega-se a pequenas coisas. Ouvi alguém dizer que o mundo seria manso se não houvesse o amor. Talvez manso demais.

Fragmento 83. Como é um ser humano que não ama as palavras ou a metafísica? O que amamos realmente?

Fragmento 84. Não agüento me sentir vazia. Pego um livro. Sinto-me só. Os personagens não sabem que eu existo e que estou a ver-lhes a vida e os sentimentos. Sinto-me uma intrusa. Continuo a ler e a conhecê-las a cada linha um pouco mais. Elas continuam sem saber que estou aqui. Termino o livro, elas se foram, não pude dizer nem ao menos quem sou, o que pensei sobre elas. Nunca saberão que estive entre suas vidas, se chorei, se não chorei. De que adiantaria? Estão confinados às palavras.

Fragmento 85. Se escrevo? Sim. Invento rostos que não existem, olhos que em verdade nada vêem. Vidas com sentimentos e sem sentimentos, que não são vidas. As personagens nada sabem do que sentem. Eu crio suas almas pela metade e para momentos. Elas aceitam, choram, amam e morrem pairando no ar sem terem existido, só com palavras. Mas eu não sou só palavras. Invento seres que são só isso. Palavras.

Fragmento 86. E talvez alguém crie nossa existência através de um belo texto. E, como nossas personagens, vivendo as palavras e a idéia pré-concebida, vamos nos transformando em algo mais do que o texto, do que as simples palavras. Será que alguém está lendo minha história em voz alta enquanto estou a viver? Engraçado, não faz pausa para um café ou uma cigarrilha de cor sépia. No meu texto, não há pontuação, fluxo de consciência ininterrupto.

Fragmento 87. Hoje sinto a leveza da angústia como se tivesse morrido e, no entanto, continuasse a viver. A paz traz consigo a beleza de algo eterno. Sinto-me viva com um sentimento que se assemelha à morte. Quem sabe é o Vivaldi que toca ao lado? Quem sabe é ele que dorme no quarto? Quem sabe sou eu sentindo que o eu não sou? A paz é para ser deixada em paz e para nada se fazer com ela; Vivaldi para ser escutado, ele, para ser amado. Sim, eu sei e ele dorme.

Fragmento 88. Tudo parece invertido, finjo que não, mais fácil brincar de certezas e cegar os olhos. Difícil convencer a vida a olhar para onde quero. Tenho tanto medo da ausência da metafísica. Eu sei, não serve para nada, não é pragmática, mas o desespero de ensaiar este sentimento é suficiente para que eu me angustie diante da possibilidade. Crer na metafísica é crer na incerteza do que não vemos. O mundo me cega diante de tanta claridade e eu me apoio na desculpa de todos, estou diante do sol e tudo me basta para viver.

Fragmento 89. Nenhum sentimento meu resistiu tanto a se deixar destruir por problemas imaginários. Significa algo? Sim, do contrário, seria fácil abreviar algumas situações. Mas este não é o caminho, talvez os budistas estejam certos, o caminho é o do meio, aquele que relutamos em tomar por ser o mais estranho e desconhecido. Evitamos o que não conhecemos, porque nos acostumamos a pensar que junto com o desconhecido existe a dor lado a lado. Nunca escolhemos este caminho e quem sabe quem o escolhe é que consegue ser feliz.

Fragmento 90. Quando estamos a minar o nosso pensamento? Quando não estamos a nos comportar como mandam os manuais? Não podemos permitir que preponderem sobre todo o resto. Nosso comportamento, sim, o comportamento.

Fragmento 91. Eu lia Fernando Pessoa e Goethe, pois eles faziam com que eu sentisse um certo conforto existencial. Eles sentiram o mundo - as dores do nosso mundo - com tanta intensidade que a minha dor não era quase nada. Eu podia, então, sentir uma proximidade com a minha própria dor. Uma proximidade que só a filosofia e a literatura podem infiltrar dentro de nós. Agradeço por terem existido.

Fragmento 92. A verdade é o que importa, mesmo que transitória, afinal todas são, não há como viver sem elas. Peço desculpas pelas idéias sem lógica, fluxo de consciência às vezes funciona melhor. Alguns meses atrás dei-me o direito de desencadear uma dor a mais. Agora, quero salvar-me de dores a mais.

Fragmento 93. Quando não conseguimos viver com segredos, também não conseguimos compreender como alguém consegue viver com eles. Eu não sei viver com segredos. Quando, na despedida, ouvi: ‘o ar não se enxerga, se você quisesse ver o ar, não iria dar um jeito de ver este ar?’ E eu respondi: sim, se eu quisesse saber da existência do ar tentaria vê-lo de um jeito ou de outro. Mas supondo que depois de procurá-lo, passasse pelos meus pensamentos que este ar pudesse transformar-se em fogo, talvez eu desistisse, não ia querer me queimar. Shakespeare talvez tenha razão, ‘a consciência torna a todos covardes’.

Fragmento 94. Às vezes, eu tinha a sensação de que possuía uma alma tão distante de si próprio que quando eu olhava de uma forma mais demorada ficava me perguntando: onde está aquele para quem a pouco eu estava a olhar? Não sei bem o que vejo agora, nem o de antes que pensei ver, nem o de agora, pois não sei mais quem é este que se mostra. Então, eu fechava os meus olhos e preferia pensar que a loucura era uma espécie de perda total dos nossos exércitos interiores. E, por isso, nossa alma fica distante até mesmo de nós.

Fragmento 95. Um labirinto tem vários caminhos, várias portas e uma só saída, todos sabemos disso. Mas encontrei um labirinto com um só caminho, porém com várias saídas. Só alguém que nos emociona e toca consegue abrir uma porta dentro do nosso ser impulsionada às vezes por coisas simples, muito simples, e aí posso novamente me sentir como a Alice no País das Maravilhas.

Fragmento 96. Sinto que estou indo embora de mim mesma, embora eu ocupe o mesmo lugar, mesmo corpo, mesmos pensamentos. Estou indo embora, não sei para onde vai esta que eu julguei por tanto tempo ser a verdadeira. A Alice do País das Maravilhas deve partir. Mas esta outra que chega, tenho medo de quem possa ser.

Fragmento 97. Na última vez em que estivemos juntos, recitei um antigo ditado indiano, que diz: depois de se subir no tigre, não se pode saltar. Se se quiser enxergar mais alto e mais longe, ver o que há por trás de tudo que existe, pois a vida não pode ser só isso, só o que vemos, não se pode saltar do tigre, seja ele o que for. Foi a minha última frase e foi neste instante, neste recitar bobo e sem sentido que algo se perdeu dentro de mim. Como alguém, somente com palavras, pode exercer tamanha força em tudo o que somos? Tempo de frases fortes, senti a terrível certeza de que eu já não era mais a Alice. Não eram nada aquelas páginas idiotas, pois que eram lirismo e romantismo puro, que hoje nada são.

Fragmento 98. Percebi que o que fizera até então, não representava nada, nem ao menos para mim. Tempo desperdiçado. Fugi de mim mesma. Como sentir algo que nunca esteve dentro de nós? Sou escrava de meus pensamentos e outras coisas que eu não sei que habitam em mim. Limites. Forças ocultas. Bastidores. Metafísica.

Fragmento 99. Prometeu que viria conversar em sonhos, mas tem aparecido muito pouco. Algumas poucas frases e se vai. O que eu senti o tempo todo em que estivemos juntos? Eu não sei, não tem importância, não preciso definir. Um tremor de mãos, um pouco de suor, um rei de espadas que para muitos não faz sentido, o ermitão. Olhar nos olhos sedutores e não ver senão o escuro?

Fragmento 100. Depois que você saiu eu quis sair de mim mesma, eu estava completamente adormecida, embora embriagada. Precisava convencer-me de que tudo era brincadeira. Por que a alma perde a sua consciência pessoal? Por que é sempre uma outra pessoa que nos leva a perdê-la? Por que nos perdemos quando o coração bate? E por que o coração não pulsa pelas pessoas certas? De que adianta momentos de alegria quando atiramos para o alto o que temos de mais sagrado? Só por pensarmos que alguns momentos de alegria podem nos deixar uma reserva de ‘vida’ por alguns dias a mais? Não deveríamos ser imunes às dores, após termos passado por elas?

Fragmento 101. Ser único no mundo é um peso, é a condenação de Sísifo, só você para saber como sente, porque sente e de nada adiantam palavras se nunca, nunca, por mais belas palavras que possamos usar, ninguém jamais conseguirá ter uma idéia de como algo foi sentido. Por isso, não adianta procurar alguém que seja uma espécie de alma gêmea, nem assim. O universo brinca conosco. A normalidade não faz sentido, torna as pessoas cegas a verdades que não existem e que não fariam nenhuma diferença para o universo se não existissem, também um futuro que nunca terão. Se, pelo menos, a metade do mundo fosse de filósofos, o tempo demoraria mais a passar.

Fragmento 102. Como se livrar da moira que habita nossa casa imaginária? Pensei que já tivesse vivido todas as dores. Sim, eu fiz questão de ir atrás e de viver o que existe no mundo. As moiras que não vivi na realidade, antecipei em meu imaginário com uma dimensão tão grande que, caso precisasse vivê-las, seriam menores, e a abertura que eu poderia dar a tudo isso nos meus pensamentos não haveria de provocar uma punhalada a mais em meu nobre e delicado coração.

Fragmento 103. Confesso, nunca sonhei com coisas que pertencessem à realidade. Eu sempre soube, meus sonhos só caberiam dentro de mim mesma. Agora, tornei-me um pouco mais distante. Mais alguns invernos e terei completado quase todo o caminho de uma distância que não quis percorrer. O eterno retorno que não escolhi.

Fragmento 104.Não importa que o coração dele venha a secar como uma árvore de outono, pois quem está preocupada com isto sou eu, não ele. Como saber se um beijo é de despedida ou de ‘em breve nos veremos’? Volto para meu porto seguro, todos temos um em segredo. É possivel salvar algum momento? Quem sabe no futuro alguém precise voltar seus olhos para este momento. Sim, melhor salvá-lo. Existe uma primeira vez, uma segunda e uma terceira, então, dizem, transforma-se em amor. Se assim fosse, eu teria amado? Talvez eu esteja virando uma traficante de minhas próprias idéias. Não sei.

Fragmento 105. O que realmente amo nas pessoas são as idéias que têm ou que possam vir a ter. Tem certas coisas na vida que são quase impossíveis de serem mudadas, sabemos disso. Então é um consolo pensar que algumas pessoas passam pela nossa vida para que nos mostrem um algo a mais que antes não havíamos percebido, as pessoas não surgem sem uma razão que nunca compreendemos qual é, mas vão embora com razões inúmeras e sempre, sempre, sabemos porque nada fizemos para impedi-las de ir. Sim, agora já posso afirmar: ‘é preciso ter um caos dentro de si para dar luz a uma estrela cintilante.’

Fragmento 106. Então quando acaba o amor? Quando eros deixa de habitar o que chamamos de nossos sentimentos? O que fica no lugar? Permanece o eros que se contrapõe a tanatos e vai embora aquele que é uma espécie de eros-transitório, eros-andarilho, eros-ficção, eros-efêmera-invenção, para que o verdadeiro eros não sucumba a tanatos. O feitiço contra o feiticeiro, o amor acaba pelo instinto dele próprio, eros nos dá e nos tira o amor, do contrário tanatos nos destruiria. Nos dá o caos e a estrela cintilante, mais tarde, transbordante, nos joga de volta para a realidade tediosa de sentimentos banais e previsíveis, com os quais podemos viver tranquilamente. Podemos então esquecer que amamos esta e aquela pessoa e darmos uma trégua à guerra dos dois exércitos: talvez atenas contra esparta.

Fragmento Final. É assim que o amor acaba.
Eterno retorno sobre si mesmo.
Mas ainda insisto: sempre na madrugada.
Anna K. & Antigos Escritos de 1997